segunda-feira, 28 de junho de 2010

30 Fevereiro 1969

Soprei direccionada para a vela, que não apagou com o primeiro abafo, nem com o segundo, e, depois do terceiro, o mundo ficou escuro, respirei o cheiro da casa, do meu quarto que ao tapar o meu sentido mais nobre, encheu-se de força e privilégio o olfacto; mas este não era um sítio físico que existisse concretamente no espectro temporal de agora, era imaginado, sonhado, e, como idealizado à luz do dia, pensei ter sido talvez uma previsão do futuro. A única coisa real deste texto, é a escuridão, como gosto de navegar nela, de tactear as coisas resguardadas silenciosamente, porque tudo o que é tapado é mais calado do que as outras coisas, como adoro procurar com as mãos o que é meu, e calhar acidentalmente noutras. Sou agora uma sombra, disse-me ela, completamente embriagada, por isso, apaguei a luz e toquei-me, senti-me, não vi mais sombras, não vi mais nada. Assusta-me de morte saber que deixo correr o rio, mas longe, assusta-me de morte não ver o luar porque silencio o que me dói, dormindo, assusta-me estar sozinha, assusta-me de morte estar sozinha porque disfarçadamente me levo para os cantos, para os becos.
Não posso acreditar que sou realmente boa para ser amada, da mesma forma que sei que sou capaz de o fazer, e, por isso, apago a luz, metade de mim não se vê, a outra metade, só tocando, fica uma cá dentro, essa que não consigo tirar mas escondo, guardando o dia para a libertar. Como posso querer liberdade se nunca parei para me libertar? Lembro-me vagamente de uma vez. Não está nas mãos dos outros, está nas minhas que quebram o silêncio tacteando as teclas e escrevendo o que o um menos dois de mim pensa sem falar. Tenho mãos pequenas, muito pequenas, sempre tive, sempre fui pequena…
Já não me dizem nada há muito tempo, cada vez mais as palavras se têm associado ao escuro para mim; é que já raramente entram algumas que me façam deixar passar a luz. Quero nadar nua mais uma vez, sentir que o meu corpo é culpa da natureza e que esta não se queixa do que faz; quero sentir de novo a harmonia a entrar-me, esticar os braços, enquanto me equilibro na beira do tanque, poder cair e sorrir ao mesmo tempo, encher o peito, mostrar-me ao céu, às arvores, aos animais, ao vento, deixá-lo tocar-me, sem o amar, deixá-lo fumar-me, gastar-me, deixá-lo mexer-me no cabelo, quem sabe a minha próxima companhia foi parte desse ar, desse oxigénio. (Pois não quero companhia nenhuma)

sábado, 26 de junho de 2010

22 Junho 1993 São Pedro do Sul


O vómito de céu já não era escuro, algumas manchas claras começavam a aparecer na imensidão, bem por cima de mim, penetravam lentamente, sem se mostrarem, porque os meus olhos não conseguiam definir o momento inicial, nem os outros que se iam acumulando como os maços de tabaco que um fumador compra, nem o último, que só o situei após alguns minutos do dia ter aparecido. A memória é assim, em alguns arquivos é sempre dia, a claridade é tão vasta, e eu não dei por ela a entrar, nem pelo tempo que passou, nem pelas seguintes que se sobrepuseram, não dei por nada. Gosto de ver o amanhecer, porque não o compreendo; ontem não me deixei dormir, permaneci de olhos bem abertos e ocupada, desejei ver o sol a nascer, calculei mais ou menos a hora, sentei-me cá fora, no cimento, de pernas cruzadas, respirei fundo e preparei-me para tomá-lo com toda a atenção que tenho, distraída, porque esperava, cheia, pois estava sozinha, com uma câmara fotográfica pronta a roubar uma imagem, duas, da natureza que acabava de dar à luz. Começaram a aparecer fendas no céu, até que os meus olhos conseguiram ver mais longe, até eles serem capazes de definir coisas à distância, como era normal. Eu adoro aquele céu. A mim devia-me este amanhecer, devia-me nadar nua no tanque, no rio, sentir o meu corpo em comunhão com a água, sentir-me, dar olhos a todas as minhas partes, sentir-me mulher, parte das árvores, da água, dos pássaros, das plantas, das nuvens, a mim devia-me tudo isto. A mim devo-me toda a vontade que tenho.