sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Não identificado
Eu tenho quatro corpos. Andamos sempre aos pares porque gostamos de andar assim. “O Demiurgo é um ser híbrido.” Luto diariamente por um corpo e, não sabendo qual escolher, vou lutando por tudo e por coisa nenhuma até que a decisão me pareça mais clara que todo este combate sangrento azulado. Queria que ganhasse o mais fraco, para que a fraqueza que jaz na minha alma fosse mais forte que a força e que da próxima vez estas forças se anulassem mutuamente e eu não me cansasse deste inferno. Viajar no mundo onírico é sempre mais agradável que a prisão do físico; seria melhor pensarmos que a matéria foi-nos dada para sabermos a diferença entre o paraíso, o sonho e o inferno, o mundo concreto e não o contrário.
A dura realidade é sabermos que o ser humano foi ensinado a dar demasiada importância à realidade física; deu-lhe tanta que não sobra nenhuma para o inconsciente, esse poderoso filósofo. Se nada tem cor, que cor têm as coisas? Que cor é a cor do nada? A mim, parece-me mais plausível o preto do que o branco.
E, se começamos sempre ignorantes e vamos crescendo, então cada vez mais caminhamos para o que não é objectivo, e ainda bem. A vida física é um cancro que se alastra até que nos mata. A mente possui a chave, tudo o resto é uma luta.
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
5 de Dezembro de 1993
Não consigo escrever sobre este dia; na realidade este dia é o dia de hoje que será tão forçosamente esquecido como um recalcamento da mente. Estes últimos dias, são meses que não quero lembrar, e desta ansiedade surge a revolta e todas as explicações que o julgamento final precisa para arquivar o processo. Lembro-me mais uma vez de como tudo aconteceu e fico petrificada, novamente. São estes ataques de pânico, tão leves como um canivete suíço, que teimam em aparecer quando menos desejo. A minha descendência animal levou-me, por segundos, a um mundo que quero visitar mais vezes. Só tu me conseguias teletransportar para lá. Era como se me conseguisse ver, e sem importar o que era naquele segundo, eu era (porque agora já sou eu dentro de mim, ipso facto, julgo-me) um ser que de fora tudo via e tudo sentia. O silêncio tacteou-me o olhar, vi o som do mundo exterior ser substituída pelo meu batimento cardíaco, que não era meu, era da rapariga que estava à minha frente, do ser que só em espelhos vi reflectido e do qual a sua sombra é a única prova de que existe, existo. O prazer infinito de me ver fora de mim, como se cada batimento me aproximasse de ti, porque, e, mesmo fora de mim, sentia que a única pessoa com quem queria praticar esta acção que fazia desabrochar o instinto animal que há dentro de mim, eras tu, era imenso, era-se-me tão gigantesco quanto os deuses conseguem, todos juntos, algum dia suportar. Sentia-me una e completa, aliás, não me lembro de sentir outra coisa senão prazer. Preciso de um eufemismo.
Sinto-me desalojada, completamente fora das minhas formas femininas. Estou desajustada ao que sou, ao que desejo, porque tudo o que vejo me fora tirado, como quem rouba um pobre trabalhador. Não posso ser nada, não posso querer ser nada, nunca vou ser nada.
Compreende por favor, que tudo o que me tornei é porque não te posso ter. É raiva. É uma cápsula.
sábado, 21 de novembro de 2009
27 de Agosto de 1998
As nuvens dizem-me o caminho, quer eu vá só ou acompanhada; não me preocupo porque os presságios estão em todo o lado. Se olharmos com atenção, vemos no quarto, uma jarra de rosas, uma virgem e uma janela, uma estação de comboios, um revólver e um limão. Nunca me esqueci da pistola, e, para quem não sabe, esta acompanha-me desde há muitos anos. Estes ditos avisos são pedaços de vida de outras pessoas, porque quem morre, quem se deixa ir para o outro lado, deixa sempre algo cá, nem que sejam as mais mundanas circunstâncias, como os eternos objectos de uma casa , da nossa casa.
A cama que se faz e desfaz todos os dias, o leito de um rio que não faz deitar sempre a mesma pessoa no mesmo curso, é um baú de memórias. Guarda o cheiro e as lágrimas, porque os sorrisos ficam sempre connosco, ainda que irónicos, há sempre alegria onde não deve, por isso mesmo, sofrer irrita tanto.
Nesta noite de Verão, desenhei uma mota de carvão numa carta do banco, meditei sobre a sua forma e pensei que, mesmo sem cor, fazia-me associá-la a qualquer coisa para além do óbvio; pois, não era a cor das coisas que me faziam voar, mas a sua forma. Viajar naquela mota, teria sido, sem dúvida, o que mais precisava naqueles dias. Porque escrever sobre outros dias, fazia-os sempre diferentes.
“Nada dura para sempre.” Preciso de um silencioso quarto.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Náhir
O céu continua a desenhar formas estranhas no seu corpo, mas ela parece não reparar. São presságios de um futuro brilhante à sua frente. Basta rodar a íris em direcção ao sol e ver a cegueira de perto, ver o que não dá para ver, perceber que não dá para prever o futuro antes de passar por ele, e já que prever o passado é complicado, deixemo-nos levar como uma rodela de limão numa bebida alcoólica impune e sermos bebidos por uma boca adulta.
Deixar o cigarro aceso perto do cinzeiro, procurar um disco vinil, a música favorita, e espetá-lo no gira-discos. Saborear o fumo e a música com aquele barulho por trás, como se estivesse a sair do coração, distorcida por passar de dentro da pele para fora e viajar literalmente para o prazer, esse mundo distante e separado das gentes por um clique é a receita ideal para quem não é egoísta. Pobre mulher, ainda tão nova e já preocupada com a fome que ataca os amigos mais próximos e, até no amor, este ser intocável ousa não ser egoísta. Não quer ter, mas dar prazer, e somente dá-lo.
Os seus olhos cor de avelã são, talvez, os que mais viram neste mundo e, mesmo assim, abraçam a vida com toda a força que têm. É um exemplo de vida, um tesouro, uma amizade escondida num sótão, um vinil de raridades dos nirvana, uma peça de adorno, um gelado de menta, uma caixa de música, uma carta de amor antiga. Criada numa noite de Outono, um verdadeiro dia em que os raios de sol penetraram o útero divino da mãe, enquanto as árvores envelheciam e muita gente morria, muitas outras estavam a ter o maior dos orgasmos, o milagre Nahiresco, assentado sobre a linha do horizonte, criado em direcção ao mar, à terra do nunca e ao sempre. Neste momento as linhas do tempo misturaram-se e trouxeram ao mundo o que de mais belo fora criado, misturado com as linhas do contemporâneo e do antigo sob a pedra mármore. Cálice de sangue divino, vertido no seu colo uterino precioso. Ela não morre.
terça-feira, 10 de novembro de 2009
17 de Novembro de 1997
Nesse espaço, retratei assuntos profundos e ridículos, organizei a minha memória, cantei canções preciosas de artistas não menos solitários do que eu e, esquecendo o dia de amanhã que viria, pensei, na depressão que seria voltar ao trabalho, no dia a seguir, ao dia que me escondi debaixo da cama.
Falta pouco para o Apocalipse, pensei. Realmente, faltava pouco para que os meus pais discutissem de novo...não! O que realmente queria exemplificar, não era uma discussão típica de um casal típico da problemática típica do século XXI, mas sim algo mais profundo, mais denso, mais controverso, de impossível percepção social e estudos psicológicos. Não obstante, numa tentativa de facilitar as coisas, digamos que discutiram. E, sendo eu uma veterana do século XX, não posso entrar numa pura adivinhação do século que sucede. É ilícito!
E, nesta noite de Novembro de 1997, que nada sei do que digo, muito menos o que penso, seria esta a análise correcta que deveria ter feito, nesse ano, sobre todos os acontecimentos familiares inerentes à minha pessoa. Sim, de facto, não há análise de tudo, como já seria de esperar, quanto mais caminhamos em direcção á ignorância, maior é a percepção dela, maior é o conhecimento.
Proibida de escrever qualquer coisa que transpareça um negativismo infindável, fujo ao que sou, ando às voltas e não paro. Novembro de 1997 poderia ter sido qualquer dia. Eles são todos iguais, mas não se repetem.