terça-feira, 29 de dezembro de 2009

23 De Junho de 1956




(Continuação de uma carta à existência)


Sentei-me na poltrona voltada para a janela, na poltrona não, era uma simples cadeira de plástico cor garrida, verde (penso eu) bem agarrada ao chão pelas mãos da senhora gravidade, responsável por dar muito peso aos meus pensamentos, que tão altivamente nascem dentro de mim. Sempre que quero voar, a existência não deixa. Mas, por sua vez, quando durmo, que é algo muito parecido à morte de qualquer ser vivo, ela adormece também e, a senhora de que te falei, simplesmente desaparece. Com isso, outra “gravidade” se apodera do nosso voo e, como livres pássaros brancos, sobrevoamos os terrenos tão bem controlados pelo inconsciente. Se Deus for alguma coisa, ele será o inconsciente. Tal como aquele objecto que serve prioritariamente para alguém se sentar, estava para a janela, eu sentei-me e, obrigatoriamente, voltei-me para a luz. Parecia que ela estava à minha espera, naquele preciso momento, parecia que tinha preparado cuidadosamente cada passo, que se sentia feliz ao passo que o meu corpo realizava metodicamente sem se questionar; e fui eu pensar que era vontade…
Girei a cabeça de acordo com o ângulo que a beleza fazia girar. Às vezes, o mais belo está mais perto do que imaginámos; dizer que o ser criador de tudo isto é híbrido, não deve ser apenas uma fala. É verdade que não me recordo das fracções de segundos que os meus olhos demoraram a captar tal imagem, pois esses, não foram mais do que o tempo utilizado para realizar uma dentre muitas outras das faculdades que o Homem possui e, por isso, embalada pela rotina, deixei-me ir, sem reparar em pormenores. Não obstante, posso garantir-te, com todas as certezas que a minha existência deixa provar, que os minutos a seguir ficaram-me minuciosamente gravados e, ocupam, hoje, o mesmo espaço que as memórias de toda uma vida que foi minha.
Hoje senti-me una e completa. Sabes, querida existência, hoje é talvez o dia que te vais recordar melhor, um dia. Hoje não te censuro, não te critico e também não te rogo pragas, vamos dançar, agora. Hoje é quase ontem, mas sinto-o tão perto. Não por ter sido um ordinário dia, mas pelo rompimento da estranha aparição num dia tão ordinário como este.
Lembro-me de ver, pelo canto do olho direito, uma garrafa de vodka; estava quase vazia, mas o corpo envidraçado permanecia robusto. Foi então, que me surgiu o breve dos mais breves pensamentos: Do facto de estar quase vazia, não implicava que não pudesse ser cheia de novo. Seria pouco provável, porque sempre era mais fácil comprar uma nova do que encher a velha. Mas, por que outra razão o corpo permaneceria forte, naquele quarto?! Depois deste momento reflexivo, os meus olhos viram o que poucos neste mundo ousaram focar.
As nuvens escorregavam no céu azul, deslizavam como os pés que vão fazer desporto nas neves da Suécia, brevemente, ao passo que o manto azul se misturava com o negrume de algumas formas estranhas brancas e cinzentas, a chuva lacrimejava sem parar, de forma objectiva, de forma que os meus olhos a pudessem ver e não fosse apenas a metáfora dos cem poetas que gostariam de ter presenciado o que vi, hoje. Estava eu, portanto, sentada; ao meu lado jazia uma virgem sem cor com um filho ao colo, do mesmo lado, um pouco mais acima, a garrafa de rótulo pouco colorido, de frente, uma janela que só abria um quarto (mais tarde explicar-te-ei porquê) e, dentro da janela havia o mundo. Mais perto, estava uma linha de comboio com menor movimento que as normais, por trás e ao lado, jaziam umas árvores nuas, completamente. Atrás de todo este cenário, estavam casas, muitas casas, tantas que nenhuma se sobressaía. Pronto, acabei de descrever-te de forma inútil a paisagem que vislumbrei. E de forma inútil o homem descreve cada prazer. Porque cada prazer é uma coisa à parte.
Fiquei uma, duas, três, quatro eternidades, no máximo, parada, com a imagem focada no olhar, mas renovada a cada segundo e não, como acontece sempre, memorizada e percepcionada posteriormente. Pela primeira vez na vida, senti-me, da maneira mais livre, presa a uma paisagem.
Toda a minha vida estava congestionada ali, tanto temporalmente, pela intensidade do momento, como metaforicamente. Os presságios de que outrora te tinha falado na generalidade apareciam, agora, naquele lugar, relacionados comigo, e só comigo.
Conseguia sentir o cheiro do ferro da linha de comboio, não porque fosse possível cheirá-lo, mas porque de tão constantemente ter sido visionada na minha cabeça, o seu odor tornar-se tão familiar, por ser, intelectualmente criado. [Com esta vontade, poderia ter criado o mundo, sem o saber.] A janela que timidamente ousava abrir um quarto do seu quarto para que fora predestinada, sorria sorrateiramente ao meu olhar; pois, era impossível tocar-se com a morte, a beleza que o rectângulo mostrava, para isso, bastava a linha e o comboio. A virgem, abaixo de mim, mostrava-me o passado que ficou ligeiramente abaixo e a minha superioridade perante a inutilidade daquelas figuras cristãs. A vodka, uma das únicas bebidas alcoólicas que me agrada, estava ali, pousada, mostrando a porta do sonho, aquela que abro sempre que preciso de sair de ti. Agora, aparte todas as outras coisas que não consigo descobrir, pigmeus que completavam todo o meu quadro, jazia o céu. Tão azul. Embora, o tempo estivesse encoberto, a felicidade dentro de mim era tal que os meus olhos aumentaram a luminosidade de toda aquela experiencia estética. E, a certa altura, a chuva que caía lá fora, sem me magoar, reflectiu-se nos meus olhos, sem ter sido uma vontade aparentemente minha, começaram a arder. Depois, incharam de forma ridícula conjuntamente com o meu peito; senti o mar a fazer-se.
Perante toda aquela harmonia, perdi as forças de que tu me dotas. Mais uma prova, para constatar a embriaguez do demiurgo, é que também eu, encontrando-me depressiva, perco-as, igualmente.
Lembro-me, vagamente, de ouvir uma música por trás. Mas o som soava-me tão desfigurado que o melhor era o do meu corpo em funcionamento. Aquela imagem tinha mais objectivos do que aqueles que sou capaz de identificar, agora. Por isso, te digo que recordar-te-ás muito bem, mais tarde, do dia que já foi ontem.
(De forma extensa e inútil, termino o que não está acabado. Compreende, existência, que isto era demasiado para a Linguagem.)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

21 de Julho de 1996



A noite caiu tão facilmente naquele dia, mais do que em qualquer outro; o desespero de rompe-lo era animalesco, completamente instintivo e, tal era o manto preto que cobria o maravilhoso céu que a luz humana era ineficaz para se ver o que se tinha de ver. Os olhos tentavam, como pinças alienadas, buscar pedaços de luz no meio da escuridão insensível; estes precisavam de ver, como o ser humano de respirar.
Ela escrevia, delicadamente, uma carta; daquelas que só se escrevem uma vez na vida. À luz das velas, com o calor a bater-lhe na cara e os sentidos a comunicarem-lhe sentimentos impelidos de se manifestarem na loucura que arrebatava a sua mente insana, respirava forçadamente, como quem respira pela última vez e, com o coração inchado, perto de sofrer um ataque neurasténico gravíssimo, ia-se lembrando das frases que cuidadosamente memorizou dos seus autores prestigiados e queridos. A vela ia a meio, poder-se-ia dizer, também, que a meio estava de perder o seu objectivo primórdio da sua existência, mas ela, ela não estava a meio, nem de longe, nem de perto; ela estava no fim. Não via objectivos próximos e, também, não queria lembrar-se de nenhum. Procurava alguns, a curto prazo, tal como este: a carta.
Olhou instintivamente para a janela e, não vendo nada, viu a sua vida reflectida no vidro sujo. Realmente, não mais do que a escuridão era a vida de qualquer pessoa, pois se alguém não se quer lembrar das coisas boas por conveniência, as memórias más não trazem a luminosidade gasta de uma boa. Ela não sabia que a sua vida era a de todos. De facto, nunca tinha aprendido a gostar. E, como a noite persistia em ficar, vislumbrava-se furiosamente no vidro da janela, especada. Esperava ter uma revelação, mas isso não seria mais que o desenrolar da carta que afinal escrevia. Que revelação poderia ela ter, senão aquela que não quer? Se éramos só uma a pensar, haveria, justamente, para cada uma, um pensamento. Se ela tivesse sido outra, eu seria mais feliz.
Eram duas velas, com os mesmos objectivos, colocadas antepostas sobre o mesmo ângulo, servindo o mesmo propósito, no mesmo local, à mesma hora. Acendidas ao mesmo tempo, iam-se queimando à medida que as palavras nasciam no papel. Pois a duração de ambas não fora igual. E, igualmente, não foram os seus pensamentos. O fogo ia decidindo como queria queimar e, alguém em mim decide agora o que ela, possivelmente, escreveu.
Tal era o papel branco, pousado sobre a secretária branca no quarto escuro, iluminados, realçados naquele quadro pitoresco, de uma verdadeira natureza inteligível. Dizia assim: “Sinto-me lamentavelmente só; não é um sentir vulgar, mas uma solidão irreversível. Sou como um quadro, estática e profunda. A minha beleza é tão relativa como pessoal, cada um sabe o que vê, e não é sempre a mesma coisa, pois os pensamentos diversos dos olhos que viram algo são sempre distintos. Há quem só veja o que quer, e, mesmo não existindo tal coisa, imagina-a. Viaja literalmente pelo prazer da imaginação e ama o que não é real e objectivo. O verdadeiro amor é esse. O ser híbrido, criador deste mundo, também fez dois amores. Um que é contornado com a imaginação, que é mais sonhado do que realmente presenciado. Este é fugaz, não obstante, é aquele que pode levar o ser humano ao ponto mais alto do cume “prazeiresco”, e não fosse tudo o que é maravilhoso ser de curta duração. Aqui reside, principalmente, a essência de tudo o que é incontrolável; procurámos neste amor, razões, erradamente. E, desta maneira, tentámos reinventarmo-nos, como seres novos que amam cada dia mais, naqueles dias que amamos menos. Neste pequeno amor, amamos exageradamente mais o papel da relação que possuímos, por isso, baseados nos desejos inerentes à nossa pessoa, criamos o amor que merecíamos e, dos confins do inconsciente, deixamos libertados pedaços de sonhos tão forçadamente pretendidos. Mas, é no outro amor que conseguimos os ingredientes indispensáveis à construção dos sonhos. Um dia disseste-me uma coisa e, no outro dia partiste. Um dia escrevo uma coisa, e no outro partirei. (…)”

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Existence? 1934



À minha querida inócua existência:

Espero que consigas dormir confortavelmente durante a noite, porque é na noite que não existo e que te rogo pragas por existires. Espero, também, que a tua inofensiva consciência te pese tanto, que te faça destituir do cargo; pois, confesso-te, como nunca antes o tinha feito, que tu és uma idiota. De facto, tu nem sequer existes, eu é que existo, da melhor forma que consigo e tu, nem da melhor, nem da pior. És hipócrita e vanglorias-te perante todas as inexistências materiais como sendo aquela que vive, que toca e que respira. Não obstante, sou quem não toca e já não consegue respirar mais. Pára de olhar para os outros, ou melhor para a existência dos outros, e vê, como nunca antes viste, a louca na qual me tornaste. E, no final de contas, conseguirás adormecer no leito da tua cama luxuosa de veludo em direcção à eternidade; e sou eu quem não consegue dormir à noite! E sou eu, quem tem de pagar se quiser ter direito ao pano vermelho, macio… Sou eu quem não mente, ao contrário de ti. Fazes-me escrever uma carta dirigida a uma entidade que não existe, chamada existência, na loucura dos teus trabalhosos dias, para que me perca nos enleios do pecado e diga o que penso em cada momento. Mas este momento em que escrevo, é um entre muitos dos que me deste e outros que virão inevitavelmente. Eu existo e, existindo, não posso fugir da loucura que me devora ao passo do medo que cresce. Tenho vergonha de mim, por tua culpa. E, por tua culpa, escrevo todas as razões das minhas culpas, a minha existência.
Tu existes, apenas porque tens de existir. Um dia convidaram-te e um dia ficaste para outro dia voltares num outro contrato. És eterna e eu não. Eu sofro e tu não (afinal de contas, sempre há um “não” na tua vida).


Da tua querida amiga que sempre te acompanhará:
(qualquer coisa)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Isolation - Joy division

In fear every day,m every evening,



He calls her aloud from above,



Carefully watched for a reason,



Painstaking devotion and love,



Surrendered to self preservation,



From others who care for themselves.



A blindness that touches perfection,



But hurts just like anything else.



Isolation, isolation, isolation.






Mother I tried please believe me,



I'm doing the best that I can.



I'm ashamed of the things I've been put through,



I'm ashamed of the person I am.



Isolation, isolation, isolation.






But if you could just see the beauty,



These things I could never describe,



These pleasures a wayward distraction,



This is my one lucky prize.






Isolation, isolation, isolation, isolation, isolation.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

13 de Julho 1924


Os girassóis murcharam porque não encontraram sol em mim. Realmente, devo ser o único contra-exemplo que refuta o ser híbrido criador deste mundo. No mundo há tristeza e alegria, há o sol e a luz, há o mar e a terra, o azul e o vermelho, o preto e o branco, o frio e o calor, a chuva e o vento, o palhaço e o mimo. Em mim, o que há? Há a tristeza, há o medo, a apatia, a dúvida e a loucura. Em mim não há mais nada, porque as dúvidas dão forma à solidão que está líquida. E o que antes eram lágrimas são agora cubos de gelo, icebergues emergidos no oceano que é o inconsciente. Vinte oceanos o devem ser; infinitos rios que teimam em cursar muito mais acima.
E o grande Alexandre que se perdeu na grande aventura. Já no tempo em que rasgara o ventre da sua mãe, as perspectivas eram altas, altíssimas como a falésia da qual caí, uma vez na vida. E também ele caiu e nunca mais voltou. Corajoso é aquele que volta sempre. E eu, despertando para a realidade, voltei. Às vezes, perdida nos fluidos oceânicos não tão límpidos que escorrem cem metros abaixo do possível mergulhável, penso e procuro pela loucura que me fez despertar tais instintos e, ainda, pela maior que os negou à força toda. Descubro, propositadamente, um outro “eu” em mim. Um que existe apenas para me afligir. Apenas para me lembrar de todos os pecados que cometi, de todos os crimes que posso vir a cometer, de todas as futuras situações ingloriosas. Logo depois, aparece o outro. Mais fraco por sinal. Um anti-corpo que combate delicadamente a doença. E, se eu fosse só corpo? Tal como as flores que são flores e os girassóis que nunca foram mais nada senão girassóis. Este episódio do surgimento de dois seres em mim, diz-me que “o mim” é tão anatomicamente bem construído como o meu corpo.
Quem me dera não sentir, para não pensar. Os Girassóis voltaram-se e murcharam. Ficaram para sempre eternos nesta fotografia.

domingo, 13 de dezembro de 2009

23 de Maio de 1999


"O que tu foste, só tu o sabes: uma corajosa rapariga sempre sincera para consigo mesma."


Entrei no meu quarto de roupão. A minha pele secava-se ao som dos meus pensamentos que pronunciava silenciosamente ao mundo exterior, tão altivos dentro de mim. Detesto quando eles se sobressaem assim tanto; quando temos tanta coisa a encher-nos e não conseguimos ver nada nítido. É uma mistura de vozes, de frases e de sentidos. Qualquer coisa que devia ser excitante, mas não o é, definitivamente. Estes monólogos só servem para me aterrorizar. Nessas alturas percebo o medo que há em mim, e assusto-me. "A existência… bem o que importa? Eu existo da melhor forma possível. O passado, agora, faz parte do meu futuro a presente está fora do controlo. “ Está tudo fora do controlo. A solidão apegava-se a mim, como a roupa seca que vesti depois, ainda com o corpo húmido. É tão só, mas tão só que consigo ouvir o seu eco algures. Talvez, deveria ter posto um pouco de creme no corpo, mas este repugna-me tanto que mal consigo expressá-lo. Tenho vergonha de mim, de tudo o que sou, que sou mais o que recebi dos outros do que de mim tenho; das minhas acções, tanto físicas como mentais. “Mas deixai-me partir depressa, para que nada vos tire!”.
Já tirei mais do que aquilo que recebi, porque tenho em mim muito mais do que recebi do que sou. Sou como uma máquina, que tudo transforma. Transformo tudo em medo, e o que já o é, numa coisa maior. E vão todos, pedaço por pedaço, desembocar num mar, pai de todos eles. Tentar mostrar um fragmento dele, é impedir que o curso do rio se faça de acordo com a lei da Natureza, é desvirginá-la. Mesmo assim, tento-o incessantemente até que alguém, importante para mim, perceba que não consigo viver mais com ele e não sou ninguém sem ele. Outro medo nasce e o ciclo recomeça. Podem existir coisas que o façam parar, mas todas elas foram inventadas pelo Homem, e, por isso, são tão imperfeitas quanto eu.
O corpo ainda está húmido, e o tempo parado. Vesti-me de preto, porque é assim que me gosto de vestir. O rio continuou. A abstracção de coisas supérfluas é o nascimento de o primeiro sintoma de felicidade, a mais pequena delas todas, aquela que é tão pequena que a mente não tem percepção dela, pois só está preocupada com o tempo. Há uma estagnação, ainda que distraidamente minúscula, efémera, nunca se sente na altura, e quando se sente já é tarde de mais. O presente está fora do controlo.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Notas


Fechar a janela e abrir a porta. Não. Na minha vida seria mais provável acontecer o contrário, porque a porta está sempre fechada e a outra está aberta para os olhos verem o que o corpo não prova. Provei o que tinha para provar e o resto apodreceu com o tempo. Esse macabro é um farol, uma coisa que só vemos nos filmes e nos sonhos e…ao qual associamos horas com conotações arrojadas.
Portanto, abri a janela. Senti o vento bater-me na cara, como se estivesse a passear na rua sem horas para voltar. Fiz de conta que tinha imensos problemas, porque pensar em fazer de conta é mandar-me para os meus tempos de criança. Brincava que a vida era a brincar, pois achava que o mundo me tinha reservado algo de muito grande, muito mesmo. Afinal, deu-me a imaginação para minha própria consolação. E, mais uma vez imagino que tinha razão. O mundo deu-me mesmo o que queria.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Não identificado


Eu tenho quatro corpos. Andamos sempre aos pares porque gostamos de andar assim. “O Demiurgo é um ser híbrido.” Luto diariamente por um corpo e, não sabendo qual escolher, vou lutando por tudo e por coisa nenhuma até que a decisão me pareça mais clara que todo este combate sangrento azulado. Queria que ganhasse o mais fraco, para que a fraqueza que jaz na minha alma fosse mais forte que a força e que da próxima vez estas forças se anulassem mutuamente e eu não me cansasse deste inferno. Viajar no mundo onírico é sempre mais agradável que a prisão do físico; seria melhor pensarmos que a matéria foi-nos dada para sabermos a diferença entre o paraíso, o sonho e o inferno, o mundo concreto e não o contrário.
A dura realidade é sabermos que o ser humano foi ensinado a dar demasiada importância à realidade física; deu-lhe tanta que não sobra nenhuma para o inconsciente, esse poderoso filósofo. Se nada tem cor, que cor têm as coisas? Que cor é a cor do nada? A mim, parece-me mais plausível o preto do que o branco.
E, se começamos sempre ignorantes e vamos crescendo, então cada vez mais caminhamos para o que não é objectivo, e ainda bem. A vida física é um cancro que se alastra até que nos mata. A mente possui a chave, tudo o resto é uma luta.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

5 de Dezembro de 1993


Não consigo escrever sobre este dia; na realidade este dia é o dia de hoje que será tão forçosamente esquecido como um recalcamento da mente. Estes últimos dias, são meses que não quero lembrar, e desta ansiedade surge a revolta e todas as explicações que o julgamento final precisa para arquivar o processo. Lembro-me mais uma vez de como tudo aconteceu e fico petrificada, novamente. São estes ataques de pânico, tão leves como um canivete suíço, que teimam em aparecer quando menos desejo. A minha descendência animal levou-me, por segundos, a um mundo que quero visitar mais vezes. Só tu me conseguias teletransportar para lá. Era como se me conseguisse ver, e sem importar o que era naquele segundo, eu era (porque agora já sou eu dentro de mim, ipso facto, julgo-me) um ser que de fora tudo via e tudo sentia. O silêncio tacteou-me o olhar, vi o som do mundo exterior ser substituída pelo meu batimento cardíaco, que não era meu, era da rapariga que estava à minha frente, do ser que só em espelhos vi reflectido e do qual a sua sombra é a única prova de que existe, existo. O prazer infinito de me ver fora de mim, como se cada batimento me aproximasse de ti, porque, e, mesmo fora de mim, sentia que a única pessoa com quem queria praticar esta acção que fazia desabrochar o instinto animal que há dentro de mim, eras tu, era imenso, era-se-me tão gigantesco quanto os deuses conseguem, todos juntos, algum dia suportar. Sentia-me una e completa, aliás, não me lembro de sentir outra coisa senão prazer. Preciso de um eufemismo.
Sinto-me desalojada, completamente fora das minhas formas femininas. Estou desajustada ao que sou, ao que desejo, porque tudo o que vejo me fora tirado, como quem rouba um pobre trabalhador. Não posso ser nada, não posso querer ser nada, nunca vou ser nada.
Compreende por favor, que tudo o que me tornei é porque não te posso ter. É raiva. É uma cápsula.

sábado, 21 de novembro de 2009

27 de Agosto de 1998





As nuvens dizem-me o caminho, quer eu vá só ou acompanhada; não me preocupo porque os presságios estão em todo o lado. Se olharmos com atenção, vemos no quarto, uma jarra de rosas, uma virgem e uma janela, uma estação de comboios, um revólver e um limão. Nunca me esqueci da pistola, e, para quem não sabe, esta acompanha-me desde há muitos anos. Estes ditos avisos são pedaços de vida de outras pessoas, porque quem morre, quem se deixa ir para o outro lado, deixa sempre algo cá, nem que sejam as mais mundanas circunstâncias, como os eternos objectos de uma casa , da nossa casa.


A cama que se faz e desfaz todos os dias, o leito de um rio que não faz deitar sempre a mesma pessoa no mesmo curso, é um baú de memórias. Guarda o cheiro e as lágrimas, porque os sorrisos ficam sempre connosco, ainda que irónicos, há sempre alegria onde não deve, por isso mesmo, sofrer irrita tanto.


Nesta noite de Verão, desenhei uma mota de carvão numa carta do banco, meditei sobre a sua forma e pensei que, mesmo sem cor, fazia-me associá-la a qualquer coisa para além do óbvio; pois, não era a cor das coisas que me faziam voar, mas a sua forma. Viajar naquela mota, teria sido, sem dúvida, o que mais precisava naqueles dias. Porque escrever sobre outros dias, fazia-os sempre diferentes.


“Nada dura para sempre.” Preciso de um silencioso quarto.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Náhir


As nuvens abrem um caminho estranho no céu, cortam relações com o ar e algumas ficam asfixiadas e morrem, caem sob a forma de precipitação; mas o que nunca ninguém vai perceber é que estas são as lágrimas do paraíso, nunca ninguém pensa nas dificuldades que o universo pode estar a viver, o egoísmo afecta qualquer cabeça…mas não a dela. Os seus cabelos negros selvagens voam ao sabor do vento e largam o aroma tão próprio, jamais em algum lugar, em tempo algum, tal essência viajará pelos confins do mundo; arrastam com eles as lembranças do que outrora foi ouro na vida daquela menina, agora mulher, criada sob os seus seios maravilhosos e um útero criado à semelhança donde esteve, agora activo, agora propício a possíveis histórias amorosas, seguro pelas formas lindas de mulher, sustentadas na maior graciosidade que alguma vez a história da humanidade criou.
O céu continua a desenhar formas estranhas no seu corpo, mas ela parece não reparar. São presságios de um futuro brilhante à sua frente. Basta rodar a íris em direcção ao sol e ver a cegueira de perto, ver o que não dá para ver, perceber que não dá para prever o futuro antes de passar por ele, e já que prever o passado é complicado, deixemo-nos levar como uma rodela de limão numa bebida alcoólica impune e sermos bebidos por uma boca adulta.
Deixar o cigarro aceso perto do cinzeiro, procurar um disco vinil, a música favorita, e espetá-lo no gira-discos. Saborear o fumo e a música com aquele barulho por trás, como se estivesse a sair do coração, distorcida por passar de dentro da pele para fora e viajar literalmente para o prazer, esse mundo distante e separado das gentes por um clique é a receita ideal para quem não é egoísta. Pobre mulher, ainda tão nova e já preocupada com a fome que ataca os amigos mais próximos e, até no amor, este ser intocável ousa não ser egoísta. Não quer ter, mas dar prazer, e somente dá-lo.
Os seus olhos cor de avelã são, talvez, os que mais viram neste mundo e, mesmo assim, abraçam a vida com toda a força que têm. É um exemplo de vida, um tesouro, uma amizade escondida num sótão, um vinil de raridades dos nirvana, uma peça de adorno, um gelado de menta, uma caixa de música, uma carta de amor antiga. Criada numa noite de Outono, um verdadeiro dia em que os raios de sol penetraram o útero divino da mãe, enquanto as árvores envelheciam e muita gente morria, muitas outras estavam a ter o maior dos orgasmos, o milagre Nahiresco, assentado sobre a linha do horizonte, criado em direcção ao mar, à terra do nunca e ao sempre. Neste momento as linhas do tempo misturaram-se e trouxeram ao mundo o que de mais belo fora criado, misturado com as linhas do contemporâneo e do antigo sob a pedra mármore. Cálice de sangue divino, vertido no seu colo uterino precioso. Ela não morre.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

17 de Novembro de 1997

Está frio. O Inverno começou no mundo real. As ruas continuam sujas de tantos pecados terem-na, já, pisado. Procurei um sítio, muito escondido, no meu quarto. A minha cama parecia-me demasiado vulgar para me refugiar, já que servia todos os dias a minha plena insanidade; pensei em algo que nunca tinha experimentado e, chegando à brilhante conclusão de se tratar de um sítio jamais pensado, jaz a realidade de que tão cedo não vou encontrá-lo, parti para uma ideia alternativa, fui para um sítio cheio de pó, escuro e de certa forma húmido, a parte que fica entre o chão e o colchão.
Nesse espaço, retratei assuntos profundos e ridículos, organizei a minha memória, cantei canções preciosas de artistas não menos solitários do que eu e, esquecendo o dia de amanhã que viria, pensei, na depressão que seria voltar ao trabalho, no dia a seguir, ao dia que me escondi debaixo da cama.
Falta pouco para o Apocalipse, pensei. Realmente, faltava pouco para que os meus pais discutissem de novo...não! O que realmente queria exemplificar, não era uma discussão típica de um casal típico da problemática típica do século XXI, mas sim algo mais profundo, mais denso, mais controverso, de impossível percepção social e estudos psicológicos. Não obstante, numa tentativa de facilitar as coisas, digamos que discutiram. E, sendo eu uma veterana do século XX, não posso entrar numa pura adivinhação do século que sucede. É ilícito!
E, nesta noite de Novembro de 1997, que nada sei do que digo, muito menos o que penso, seria esta a análise correcta que deveria ter feito, nesse ano, sobre todos os acontecimentos familiares inerentes à minha pessoa. Sim, de facto, não há análise de tudo, como já seria de esperar, quanto mais caminhamos em direcção á ignorância, maior é a percepção dela, maior é o conhecimento.
Proibida de escrever qualquer coisa que transpareça um negativismo infindável, fujo ao que sou, ando às voltas e não paro. Novembro de 1997 poderia ter sido qualquer dia. Eles são todos iguais, mas não se repetem.

sábado, 7 de novembro de 2009

15. Casa


No fundo, bem lá no fosso, somos todos coveiros. Cavamos com a nossa inchada, a consciência, o buraco e a vida define o tamanho. Não está nas nossas frágeis mãos de seres humanos efémeros decidirmos o sítio no qual nos iremos sepultar, nem quantas vezes gostaríamos de remodelar esse buraco. (Fez-se luz!) Descobri, neste preciso momento, por que raio nos encontramos todos numa esfera azul, qual vida, qual coisa maravilhosa, qual nada! ... O Homem está no mundo para se enterrar. O azul é a cor que se mistura com o sangue que se decompõe e cria o roxo, a cor da tristeza, da penumbra, do pecado. O céu é azul e, nas nossas vidas, só falta o ouro para completar a famosa expressão. Ao visitarmos o nosso último apartamento, as nossas esferas oculares cegarão de tão azul ter aquele azul do céu, que é tão meu, tão nosso. Ai, meu amor, poderíamos morrer já e terminar com tudo isto. Não havia "para sempre" que nos separasse; de missão cumprida, juntaríamos os pés, determinados e viajaríamos até ao infinito. Sem família, sem responsabilidades. Não há trabalho, nem missões. Inseguranças e incertezas...quem ouvira falar nelas? Decisões?! Oh meu amor, também não as tinhas de tomar. Vês? A tua melhor vida seria a tua morte. Breve, bela conclusão de quem é ilícito neste mundo, sem o ser por culpa de alguém...(quanto a isto, há poucas certezas).
O riacho da casa é vergonhoso. Embora seja de maior fluxo uma vez por mês, e há quem diga que nunca engravida. E o revólver com limão?! Deveria estar no balcão sujo da cozinha.
Fechei a janela que dava para o jardim. A natureza é tão bela porque não se lembra de nada. Para ela tudo é efémero, menos ela. A pistola dispara todos os dias balas de brincar à cabeça dos mortais. Para todos os dias, um homício. Quem o diria?! E, para quem não se conhece e se dispara, também não é suicídio; afinal de contas quem sabe não terá sido o Manel?!
Fechei os olhos, segui o pesadelo. Era sempre o mesmo. Nunca partiu, nunca ousou ir-se embora. "O resto é morrer!"

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

12. Leitaria


Deu-se a explosão. Tudo explodiu, morreu, voou e reencarnou. O momento que fica entre a vida a morte e qualquer coisa mais foi tão suavemente silencioso como um grito nos sonhos. A ausência de som foi tão nítida como o branco numa tela. Mas estava escuro, pois os incêndios e a noite pintaram o quadro daquele dia. A destruição era tanta, mas mesmo assim, já mortas, as beatas continuavam alegremente rezando, a um ente superior ao qual se escravizam; só pode ser homem, isso é certo. E, à medida que iam sendo degoladas, as cabeças caíam no chão com as faces voltadas para o passado e as bocas, essas estavam dependentes da última palavra da oração que pronunciavam; havia bocas que ficavam completamente abertas, enfim, a palavra “Ámen” dava que fazer. E, mesmo naquele caos tremendo, ainda havia quem, mesmo sabendo que a morte era certa, decidisse que a última coisa que queria ver e fazer era visitar a Igreja, a casa do senhor, a casa dos dízimos! Admiro a completa inocência destes seres religiosos. Forçosamente acreditam no que nunca viram, e são felizes. Qual desgosto, qual desgraça, nada lhes pega, são imunes porque nunca admitem a culpa, fazê-lo era desacreditarem naquilo para que trabalharam toda a sua vida. As crianças, essas, tristes e pobrezinhas, coitadinhas, riam-se e brincavam aos bonecos, às casinhas e às caçadinhas. Hoje, as caçadinhas apenas evoluíram de nível, eu subi uns quantos, hoje jogo à procura incessante pela felicidade. O mais engraçado de tudo, é que ela é tão rápida, mas tão rápida que não faz parte das personagens do jogo, e, o máximo que posso caçar será o senhor tédio, a senhora razão, a senhora apatia e a senhora desilusão. Consigo ganhar pontos extras se apanhar o Senhor ridículo porque me permite ridicularizar todos os meus medos, anseios…pensamentos.
Brincavam as crianças felizes pelos passeios dos horrores, onde ficavam?! Em todo o lado, todos os passeios fazem-me náuseas. Qualquer decisão é um desassossego, e qualquer caminho, uma gravidez. Acabei por ir contra ao coveiro, estava consolado porque finalmente o seu trabalho tinha progredido economicamente para o capitalismo, suado, disse-me: A Terra é pesada, faz-me transpirar. Ela aguenta connosco num primeiro momento e, num segundo, somos nós com uns ínfimos quilos por cima das nossas tábuas de madeira. Ninguém dá nada a ninguém, menina! Fez-me pensar, meditar durante lânguidos momentos. Ele tinha razão, isso era óbvio. Facilmente, abstraí-me com o panorama de horror que os meus céus perdidos, mas vivos, acabavam de mostrar. O coveiro de tanto emprego, perdeu a conta de quem estava a enterrar, as cerimónias ficaram para depois. Muitas das vezes, famílias completas e amigos estavam todos mortos, o ritual era impossível. Festejar?! Festeja quem vive!
Que fazia eu naquele sítio? Naquela vida? Nada. Não obstante fora quem fazia tanto e quem atribuía todo o sentido em estar aqui que partiu…
Ouviu-se um tiro, mas eu, eu já não o ouvi.



1. Palácio


Os degraus estavam lá. Sempre estiveram, marmóreos e axadrezados; cheiravam a lixívia e eram altos. Matei um mosquito. Tentei subir, solenemente e de cabeça baixada como quem já mostra o lenço branco mesmo antes de a batalha começar, e, sem que ainda tivesse dado o primeiro passo, peguei no revólver. Talvez o suar do exercício físico de fazer aeróbica numa escada fosse equivalente ao de um suicídio. Quanto não se deve emagrecer com pensamentos tão densos como estes. A balança estava errada. Na realidade, sinto-me mais pesada do que nunca, mais pesada do que ontem, mais leve do que amanhã. Quase que matei uma formiga, desta vez. Que sensibilidade para a morte têm estes bichos, e nós que queda para os pensamentos e meditação…completámo-nos como o sexo. Eu sou quem pensa, tu quem faz. Nós somos eu e eu, eu não sou ninguém, porque sou muita coisa.

O comboio está a chegar. Consigo senti-lo. É agora que a minha memória grava a analogia que normalmente o meu cérebro se serve sempre que vê tal transporte público. Quantas analogias serão precisas dentro do tempo, para que o tempo as torne débeis e inúteis. Assusta-me, sinceramente, que venha ainda mais uma tentativa, ainda mais intensa, ainda mais real, corpórea. Espero que efémera; se vem mais uma, virão mais amanhãs. Eu espero. Faço figas. Quero viver, mas não desta maneira. E se houver só uma? E, se me assusto como quem acaba de ter um único momento de lucidez em toda a vida, jaz em mim a razão que não tenho, mas que construo de que penso fazer algo e fico apenas pelo pensar. Não o faço, não o vou fazer.


O grito abafou no pinhal. As árvores esconderam-no por baixo dos seus ramos extensos e esguios; quem me dera ser feita de árvores por dentro. Pulmões tenho, mas só servem para respirar. E quem respira, só serve para viver. Só servir para viver, é não viver. E, não viver é morrer.
Ouvi uma voz. Não consegui decifrar o som esquisito que entrava por mim, ondulante; também o cheiro daquela natureza verde e escura subia sorrateiramente pelas minhas narinas, que fedor, mas era livre, era livre…Livre. Meia escondida naquela escuridão imensa, por muito negro que estivesse o panorama de todas as memórias, anseios e planos, era mais clara que toda aquela obra divina e, com alguma luz que a minha mente emitia, descobri o estado mais puro e relaxante que algum ser humano ousa algum dia ficar. Fechava os olhos, voltava a face para a luz, tentava arduamente cegar as pálpebras com os raios do astro rei, enquanto as árvores faziam festas no meu corpo e na outra natureza que me rodeava. A luz que se fragmentava pelos variados braços da natureza batia-me nas pálpebras, nos olhos, no corpo à medida que o autocarro me levava para lado nenhum. Porque ir para casa é voltar para nenhum lado. Esse lugar não existe. Talvez a morte da lua ainda guarde algo mais que não seja molhado e doce. Pensar na noite é saber que vou ser livre. É abstrair-me do tempo em que sinto com o coração deixando-o sentir e ridicularizando todas as suas preces. Não me acorrento quando sonho, entro, sim, num ciclo vicioso de tal abastraccionismo que me leva ao extremo absurdo de pensar que sou feliz. Abstenho-me de qualquer sentimento horrorizado, abstenho-me de gritos e queixumes, liberto a minha alma mesmo que ainda seja de brincadeira e voo.