segunda-feira, 11 de julho de 2011

Golpe

Como posso tão facilmente esquecer um golpe na minha mão? Golpeado por mim, num vidro que não me lembro de reparar na sua existência senão após deixar de existir, um vidro que se despedaçou e infiltrou algumas das suas partes em mim, as quais se sobrepuseram na minha pele e fizeram uma elevação um tanto vermelha, que dói sempre que passo o dedo. Como pude esquecer tão facilmente tamanha pisadura que poderia ter comprometido o meu futuro, isto nem mais, nem menos, pela simples razão de ter golpeado a mão direita, com a própria força que o braço direito impulsionou ao seu vizinho de baixo, uma mão tão pequena, de pele enrugada, pouco típica para a minha idade. São dezanove anos, são marcas de algo genético que se espalhou pelo meu passado, são marcas iguais às de um familiar meu. Como pude fazer que tal coisa pudesse passar tão despercebida como o minuto que queremos infalivelmente perceber como se processa a sua passagem, mas que, quando olhamos, já é tarde demais. Como isto aconteceu? Que se passou comigo? Quem sou eu? O que é que eu fui fazer? Não duvido de que estas perguntas passaram por mim, as quais não consegui prontamente responder. Muito menos agora, pois há questões que foram feitas para serem respondidas por intuição, sem deixarem qualquer indício de certeza e demonstração. Não vale a pena rebuscar pelo vidro, porque ele já não está lá. Agora, está um novo, ou, se calhar, não parti aquele e aleijei-me noutro sítio qualquer, porque não consigo evitar a dor. Mas consigo apontar de antemão para o sítio onde as gotas de sangue caíram, e consigo lembrar-me da minha mão ensanguentada, e do meu corpo que levitou momentos a seguir. Qual espanto é o meu agora, ao aperceber-me de parte da minha consciência na altura, mas não quero partilhar isso, poderá confundir o leitor e causar demasiadas expectativas ao que pode ser apenas um pensamento retrospectivo do que aconteceu, com um pouco de imaginação à mistura. E é que nutro tamanho gosto pelas palavras, mas são sempre elas que me deixam ficar mal; mesmo o meu silêncio que parece inofensivo, leva sempre com ele os pensamentos dos outros. Mas, afinal o que é que quero? Quero primeiramente continuar a escrever sem realizar um único parágrafo, porque um único que seja influenciaria o meu movimento de pensamento, eu sei disso. Mas o que quero? Perguntem-me o que quero? Quero que o fim do mundo não seja algo muito doloroso, e o fim do mundo é o fim do meu movimento como peça de engrenagem inútil de uma máquina. Quero que seja um final inócuo, cheio de surpresas, mas não quero esse final, nem para mim, nem para ninguém. Oh preciso de cozinhar, preciso de cortar cebola e chorar, preciso de só querer que os meus olhos deixem de arder, preciso de só querer apenas uma necessidade que seja tão básica, mas que demore imenso tempo a passar. Levaria imenso tempo até que alguém me convencesse a gostar de tomate e, talvez, os meus gostos alimentícios sejam a prova mais directa de que continuo a ser o que sou, mas que diferença faz aos demais que já não acreditam nessa mesma continuidade da minha identidade? Nenhuma. Nem para mim faz, pois faria alguma diferença não ser mais o que era? Tenho duas fotos, agora, aqui, pousadas sobre a mesa de jantar, sobre uma tolha verde com flores, manchada de vinho branco e outros sabores. Olho para as duas que estão num porta-retratos de plástico transparente, são fotografias do homem que amo, sim. Uma outra em formato Polaroid me cativa atenção, foi vítima de rouba por minha parte, o que não poderia dizer o mesmo dos meus sentimentos, esses nunca são roubados, são meus, propriedade minha, tanta quanto o meu corpo, isto tudo até prova do contrário. Fotos pousadas sobre a tolha verde, com flores e vinho branco, fotos que me trespassam a mente, e colocam sobre a mesa o presente. Hoje descobri que a foto Polaroid tinha algo mais para me dizer, hoje fez-me lembrar de um diálogo que parecia ser inútil num dia tão inofensivo quanto este está a ser. Esse diálogo trazia com ele uma missão, tal como uma mala de viagem que combina a mesma hora para ser trocada de dono por outra mala exactamente igual àquela, um negócio qualquer escondido. Ora este diálogo trouxe consigo uma mala vazia que eu transportei nesse dia, mas só a desenterrei hoje, estava lá uma arma bem guardada, e eu percebi a mensagem, mas demorei, uma vez que já passou mais de um ano até que voltasse a lembrar-me da mala. Peguei na arma e matei um bicho que se tinha apoderado de mim e que a pessoa da Polaroid se tinha apercebido. Nunca escrevi nada sobre ela, mas quero deixar em algum sítio, até não me importo que aqui seja, que tudo o que veio dela, foi bom, não consigo pensar em alguma coisa de mal que me tenha feito, porque nem sequer imaginar é possível. Espero que estes últimos períodos sejam como a mala que me enviou. São sinceros, e é tudo que se pode esperar da palavra de um homem. Talvez eu tenha percebido isso agora melhor do que nunca. Se a palavra de um homem tivesse sido verdadeira, por cima de qualquer egoísmo insensato, eu não teria golpeado a minha mão direita. Desculpa senhora da Polaroid, sei que isto te teria desiludido, peço desculpa, também, ao meu homem, sempre sincero comigo, mais do que com ele próprio. Um herói. Quero aproveitar ao máximo a minha estadia com ele, para que um dia mais tarde possa relatar os actos heróicos ao meu filho, seja ele quem for ou o que for. O golpe da mão tem uma história, tem um antes e um depois e, se eu escrevesse um livro, as primeiras páginas seriam para relatar um banho que dei ao meu corpo, no qual passei a maior parte do tempo a olhar para as minhas mãos mergulhadas na água, no qual o tempo foi dispensado para eu dar atenção àquela parte do meu corpo e só eu faço uma pequena ideia, melhor do que a de qualquer outra pessoa, daquilo que pensei nos momentos em que as visualizei. Agora a mão direita não é igual ao que era, de vez em quando sinto a dor de tudo, sinto um formigueiro que tento esconder de mim própria para que continue a passar despercebido o acto que não poderei nunca apagar. Não fui capaz de tirar uma foto à minha mão. Ainda não fui capaz, mas agora sou. Agora que escrevi que isto me passou tão despercebidamente como aquele minuto que queremos minuciosamente entender. Um dia destes, desenterro mais uma mala, um dia destes a justiça fará com que a realidade me permita entregar malas, sem que tenha de mexer coisa alguma. E agora tenho de ir, porque a minha vida marcou-me uma coisa para o minuto x, e o y tem de andar sempre a par, e não há nada mais natural do que isto. Sigo a minha viagem, como um viajante e que sorte a minha, que hoje vou andar sozinha de comboio, acompanhada com um livro e alguns leitores que ao mesmo tempo disponham das mesmas leituras que eu, quanto muito daqueles que estão anunciados pelo autor. E a solidão viaja de dentro para fora, e o mundo passa despercebido, tal como o minuto, o segundo, a hora, tal como estação de comboio, as pessoas, os cheiros, o fumo, tal como golpe, o meu, que não é direito na mão direita, que afinal não comprometeu o meu futuro.

domingo, 3 de julho de 2011

Só para lembrar que fui um quadro, num dia qualquer.

Os lençóis dançavam por cima dos nossos corpos, nós não reparámos, estávamos demasiado ocupados com o imaterialismo para o qual os nossos corpos trabalhavam forçosamente, não reparámos em nada, era tudo o que havia para dizer daquilo que fazíamos. Se outros olhos vissem, não teriam visto mais nada do que dois corpos a divertirem-se, a tentarem rebuscar algo e rabiscar no quadro, porque teríamos dado um quadro, um belo quadro por cima de qualquer cama, do qual pudessem traçar dois riscos para indicar outros corpos mais abaixo, outros corpos quaisquer de outra cama qualquer. O problema disto tudo, é que esta simplicidade intratável, porque é uníssona, leva-me ao céu. E depois, tudo parece dançar à minha volta. Nenhum problema acerca do realismo me preocupa senão aqueles que tenho que estudar. Sou feliz contigo e tenho nisso o meu maior realismo de sempre, seja ingénuo, seja meu. Seja tudo o que ele quiser, eu quero amar-te e, por isso, amo-te. Não pode ser vontade, não aquela universalizada, só pode ser a minha, que é muito mais importante que qualquer outra, sou sincera. Nada mais me aflige.