sábado, 26 de fevereiro de 2011

David Hume e a Identidade Pessoal

Ensaio realizado para a cadeira de Filosofia do conhecimento I (1ª parte)


1 David Hume e as Percepções

“Todas as percepções do espírito humano reduzem-se
a duas espécies distintas que denominarei impressões e ideias.
A diferença entre estas reside nos graus de força e vivacidade
com que elas afectam a mente e abrem caminho para o
nosso pensamento ou consciência.”

Hume defende que na mente existem percepções e hierarquiza-as; divide-as inicialmente em ideias e impressões; as primeiras são pensamentos e, as segundas são as sensações, são os embates dos nossos sentidos com o mundo; relaciona-as: todas as ideias derivam de impressões, não podendo haver ideias sem impressões que lhes correspondam. Como as distinguimos? Hume responde que a distinção entre umas e outras é feita pelo grau de força com que se nos aparecem, ou com que são experienciadas (na mente), isto é, uma impressão será sempre mais vívida, mais límpida, mais forte que uma ideia, pois a ideia, que deriva necessariamente da impressão, terá sempre uma cor mais esbatida, mais baça, menos forte; a impressão seria a fotografia que alguém tira a uma paisagem, a ideia, seria o desenho que alguém faria dessa fotografia. De seguida, divide as ideias e impressões em simples e complexas: - Para Hume, as ideias simples ou impressões simples são aquelas que não permitem distinção ou separação, e concebe contrariamente as complexas, usando o exemplo da maçã que nela podemos distinguir ideias ou impressões simples, que são as de uma cor, de um cheiro ou de um sabor e complexas, a própria maça, a qual (como acabei de realizar) posso dividir em várias partes, simples e indivisíveis (que não podem ser desmontadas). Admite, ainda, que há uma grande semelhança entre as nossas ideias e impressões e que, a única diferença que pode encontrar subjacente a elas é o grau de força e vivacidade.
Hume, conclui que todas as impressões e ideias complexas derivam das simples, na medida em que para compreender as ideias complexas, disseca-as em simples e, se não conseguir identificar as que a compõem, tal não implica que não haja algo que as componha.
Posteriormente, Hume considera que, se as impressões precedem sempre as ideias, então não há verdades de facto, verdades necessárias a priori, pois tudo vem da experiência, - ninguém consegue transmitir a uma criança a ideia de vermelho, sem que esta tenha a impressão que lhe corresponde.
“Não podemos formar uma ideia
exacta do gosto de um ananás, antes de realmente o saborearmos.”
Mas, não é absolutamente impossível que existam ideias que precedam as impressões correspondentes e, para provar isto, Hume utiliza o exemplo das cores e dos seus cambiantes: é possível que, usando a imaginação, não tendo a impressão de uma cambiante de azul, por exemplo, consiga criar a ideia da cor que falta, combinando o mais claro que antecede necessariamente com o mais escuro que lhe sucede.
2 DAVID HUME E A IMAGINAÇÃO
Para Hume, a passagem das impressões para as ideias, pode ser feita de duas maneiras – ou conserva metade da vivacidade inicial, algo intermédio, ou perde totalmente a vivacidade da primeira, constituindo aquilo que ele denominou por ideia perfeita. É através da memória e da imaginação que as ideias e impressões surgem na mente; ao passo que as ideias da memória são mais fortes, mais vívidas que as da imaginação. (Hume constata isto, baseando-se na diferença entre o grau de dificuldade com que retemos as ideias oriundas da imaginação, e aquelas que retemos providas da memória.)
“Outra diferença, não menos evidente, entre estas duas
espécies de ideias é a seguinte: embora nem as ideias da
memória nem as da imaginação, nem as ideias vivazes nem
as ténues possam aparecer na mente enquanto as impressões
correspondentes não se anteciparem a preparar-lhes o
caminho, contudo a imaginação não fica sujeita à mesma
ordem e forma que as impressões originais; pelo contrário,
a memória sob este aspecto fica de certo modo presa, sem
qualquer poder de variação.”

A Imaginação tem a liberdade de poder variar, a memória não, esta é simplesmente a faculdade responsável pela organização das nossas ideias e impressões e pela manutenção delas exactamente como eram originariamente. O poder atribuído à imaginação é a prova, para Hume, da existência de ideias complexas, pois só com a possibilidade de separá-las, a imaginação consegue criar novas ideias sem impressões, directamente, correspondentes; afirma, também, que existem qualidades do pensamento por detrás desses processos de associação, sendo elas de semelhança, de contiguidade no tempo e no espaço e da relação causa e efeito. Ora, neste presente ensaio, recorrendo à explicação breve do meu entendimento sobre a teoria Humeana relativa aos assuntos anteriormente descritos, pretendo descrever a forma como cheguei às minhas objecções, de maneira a que a leitura faça associar, através de algumas destas qualidades do pensamento, as ideias e as impressões que se me decorreram daquelas que interpretei ao ler O Tratado da Natureza Humana.
3 OBJECÇÃO
“ E agora pergunto se
será possível essa pessoa, usando a sua imaginação, suprir
esta deficiência para alcançar a ideia dessa cambiante que
os seus sentidos jamais lhe transmitiram? Julgo que poucas
pessoas serão de opinião que não é possível, e isto
pode servir de prova de que as ideias simples nem sempre
derivam das impressões correspondentes; contudo o caso
é tão particular e tão singular que quase não vale a pena
notá-lo e não merece que, só por causa dele, modifiquemos
a nossa máxima geral.”
Debruçando-me sobre este caso particular, parece-me que o filósofo utilizou um exemplo muito conveniente, deixando de lado todos os outros de maior pertinência. Neste, Hume apresenta a possibilidade de uma pessoa que tenha o sentido visual em condições normais e tenha gozado dele durante trinta anos, que reconheça todas as tonalidades de cores possíveis, excepto uma cambiante de azul; para ele, seria evidente que a pessoa, usando uma das faculdades mentais que permite impulsionar as ideias e impressões na mente, conseguiria descobrir a cambiante que falta, sem nunca ter tido a impressão dela. Parece-me que Hume, com o exemplo acima, pretende provar a existência de ideias simples sem impressões que lhes correspondam, não obstante, acaba por afirmar que a Imaginação é a responsável criadora delas, associando outras derivadas das impressões; logo, se assim o é, Hume não prova a existência de ideias simples sem impressões, mas sim, da existência dessas sem impressões que lhes correspondam directamente. No entanto, a meu ver, há exemplos bem mais pertinentes que justificam a alteração da máxima geral - até porque, dentro de uma cor (considerada ideia simples), consigo dissecá-la noutras cores, nomeadamente as que compõem a primeira, – neste caso, o azul mais claro e o mais escuro respectivamente que conheço, misturados, - sendo assim a quê que poderemos atribuir a designação de ideia simples?
- Quando passo na rua, adquiro imensas impressões de paisagens, cheiros, cores e, sobretudo, das pessoas que passam. Ainda que tenha a ideia da cara de um indivíduo/ser humano (ideia simples), com a impressão que lhe corresponde, e, ainda que muitas das caras que vejo me passem despercebidas (pela quantidade e distracção da minha mente) e, ainda que consiga ter impressões indirectas de todas as caras que vejo diariamente, não consigo perceber o meu espanto sempre que me cruzo com alguém novo. No mesmo seguimento do exemplo da cor, eu deveria, através da Imaginação, criar caras diferentes, não obstante, ainda que consiga criar algumas (conseguindo sempre identificar as ideias ou impressões que lhes correspondem indirectamente), há vezes em que me espanto, por estar a ver algo que nunca tinha visto antes. Ora este exemplo pretende mostrar que podem existir ideias sem impressões precedentes indirectas, ou eu de certa forma deveria aperceber-me delas, assim como consigo identificar cada ideia simples contida na ideia complexa que faço derivar por Imaginação.
Mas eu já tive tantas impressões de indivíduos ao longo da minha vida, então, por que razão crio continuadamente impressões novas e diferentes, ideias novas e diferentes, daquelas que tinha inicialmente? Será porque não descobrimos todas as ideias simples subjacentes ao conjunto que é o indivíduo, ou então porque estas são variáveis pela existência real e concreta de várias identidades, pessoas, incluindo a minha? A nenhuma maçã concebo ideias simples de natureza diferente, mas ao indivíduo sim. Ora é verdade que para toda a cor, Hume propõe um padrão, e é verdade que há um padrão para todas as caras, sem embargo, quando o filósofo fala de tonalidades, então distancia-se do padrão original (de azul), e percorre, à mesma escala, as variações dessas, caras várias no meu exemplo. E eu consigo nessa cara nova dizer que ela faz parte do padrão que defino ser um ser humano, contudo isso não é de todo uma impressão indirecta para aquilo que tive, pois não a criei na minha mente, através da Imaginação. Logo, aquilo que a pessoa do exemplo Humeano cria é a tonalidade e não, de novo, o padrão, havendo, desta forma, ideias que parecem não ter impressões (directas ou indirectas) precedentes, exemplos mais pertinentes capazes de alterar a máxima.
Carla Lopes, Faculdade de Letras Universidade do Porto

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Meu querido amor:

Escrevo da janela do teu quarto, porque agora não me sinto sentada no teu cadeirão preto sisudo, sinto-me fora a olhar para o céu, para a grande cor que me ensinaste a ver desde que te conheci, olho para as árvores, para o sol que se põe atrás delas a medo, para traduzir o que vem de lá de fora que cai em mim sob formas que desconheço (pobres olhos). E eu não sei se o que vem lá de fora, vem cá de dentro, nem sei, muito menos, se o que as minhas mãos escrevem é o amor que elas sentem pelas tuas e não o que as outras partes sentem. Não sei nada disto meu amor, nem sequer o que me apetece escrever a seguir, nem o que faz a vontade de fazê-lo, mas sei que gosto de sentir o teu cheiro, e de todas as vezes que cheiro a tua roupa que carinhosamente dobro, ele é sempre o mesmo, a minha memória está impregnada dele e, se ela fosse um quarto, teria o teu perfume, ou mesmo um palácio, ou até mesmo numa parte do bosque com que sonho vezes sem conta, e, mesmo sonhado, sem ser um jardim muito bem arranjado, com as plantas geometricamente descritas sobre o plano, é sonho, não é bonito e é sonho, cheira a ti e não tenho nariz naquilo que silenciosamente penso.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Dentro do meu cérebro há um quarto, com pouca luz, muito pouca, no qual está uma réplica minha sentada no chão, acorrentada à parede, no chão estão migalhas cheias de bolor, já cresceram ervas daninhas à minha volta, alguns cantos cheiram a urina, que me anestesia para que adormeça sem pensar, de vez em quando aparece um homem, qual besta sisuda que me diz poder escolher entre migalhas com bolor ou coisa nenhuma, e são todas iguais, todas do mesmo tamanho, com a mesma doença e eu digo-lhe incessantemente que não consigo escolher, e ele diz-me para o fazer e bate-me para que acorde (ou adormeça de uma vez), eu escolho uma migalha qualquer, ou melhor, que penso eu ser qualquer, quando a besta sabia que era exactamente uma qualquer, porque nesta vida não há importâncias maiores, nem nesta, nem em nenhuma.
Mandei uma carta ao pintor, queria partir-lhe o quadro na cabeça, abrir-lhe a cabeça, chupar um pouco do seu sangue, e dizer-lhe que a sua obra me mete nojo, às vezes, porque é só às vezes que eu não gosto do mundo, nem das suas cores. Algumas pintas de sangue mancharam a tela, e eu criei uma nova cor no meu mundo, acidentalmente, e, acidentalmente, fui assassina durante cinco segundos. O céu do quadro ganhou uma tonalidade avermelhada, assim que espalhei com o dedo algum do seu sangue, que me importa se o criador morreu? A partir do momento em que algo é criado, tem de se deixar ir, como uma mãe que pariu um filho, e o mundo já está há muito tempo sem alguém, o pintor anda ocupado, mas eu não, sempre posso actualizá-lo dentro de mim, mas a besta não me larga, besta sadia que me acorrenta dentro do quarto, com pouca luz, junto a mim, desde que nasci. Quero estar dentro do meu útero, pinta-me isso, por favor, qual será o cheiro dele? Deve ser fascinante ficar durante anos no mundo adormecido, dentro de alguém, à espera de uma ordem para viver, deve ser fascinante ficar calado, cúmplice desta merda toda, deve ser fascinante ouvir a voz da mulher onde se encontra alojado sem nunca a ter visto, “que será ela? Uma besta? Às vezes parece uma, outras parece não ter sexo, às vezes ouço mais vozes do que a dela, mas outras estão mais perto, algumas mesmo perto de mim, a dizer “amo-te” ofegantemente, outras parecem dela, às vezes ela fala com ela própria, besta estranha, que coisa mais estúpida.” Um útero tem cérebro certamente, quanto muito partilhará do meu e saberá que sou uma ela e terá a mesma língua natural que eu. Tanto pampsiquismo para apagar esta solidão! Parabéns escrivaninha, parabéns papel, parabéns caneta, que vivas muitos anos, que tenhas muita saúde, que sejas feliz! …Por que não deste tu consciência a estas coisas? Gostariam elas de ouvir este discurso mundano? Pintor, achas que gosto de ouvir esta merda? Que escolha foi essa a tua, meu caro. Eu desculpo-te, eu desculpo-te! Para não bastar, ainda me desta esta coisa ridícula chamada perdão, que muito sinceramente, ainda foi pior criação que a da consciência, ai pintor, que deste a esta tela dimensões demasiadas.
Vai com o quadro lá para fora, está partido, agora sujo de sangue, vai lavá-lo na chuva fria que cai lá fora, ninguém vai sentir nada de diferente, enche a tigela de sopa à rapariga que morre de fome, dá moedas ao toxicodependente que apenas deseja que lhe desenhes mais uma dose, molha todas as caras, vai apagando o mundo, ninguém notará pela sua falta, afinal o mundo está sempre em constante mudança, apaga o desenho, desenha por cima, toda a gente diz que mudei e a culpa foi tua, estás sempre a desenhar-me formas em cima, vai pintor, de quadro encaixado no sovaco, como eu encaixo todos os livros de filosofia, vai pintor, que me deves uma, não percas tempo!
Desce a rua, aninhado com a tua obra, não olhes para o lado, podes ver algo perfeito e não convém, muda a tua obra, desaparece e reaparece sob a forma que desejarias, e, se desejares ser forma, jamais estarás sobre ela, serás servo dela, acorrentado às paixões, como cada homem que vai segurado ao barão do autocarro, uma tentativa árdua, por vezes nem tanto, de se manter equilibrado, enquanto não se ocupa de coisa nenhuma, calca cada paralelo do soalho, eu gosto de calcar alguns, penso no sabor que terão de tantos pés terem passado, serão estes só para calcar? Terão as ruas algo para nos dizer? É que quando vou sozinha a caminhar, certas ruas mudam o meu pensamento, este caminho idiossincrático das ideias deve ser despontado por algo e, muito sinceramente, creio que seja a minha acção física. Por isso, querido criador, vai dar um passeio, refrescar as ideias e espera que a tua inspiração venha, que a minha não está para breve.