domingo, 24 de outubro de 2010

Desenhou-lhe um triângulo na testa, depois de se terem satisfeito mutuamente. Desta vez, o sangue não estava explícito, mas corria nas veias dos seus dedos. O silêncio fez eco naquelas paredes, e propagou-se no corpo, da mesma forma que se propaga no Universo, viajou para lá, encaixando-se no vácuo onde ficam as coisas que não se libertam. Já tinham saudades de ver diminuir a distância que os une, e, unidos pelo mesmo desejo, viajaram sobre a matéria, encontrando o espírito. Depois de o encontrarem, sentaram-se ambos num cadeirão verde-escuro, qual posição de observador ideal, e vislumbraram o sentimento; eles não se lembram de terem visto coisa alguma, mas sabem que viram, qual piratas que avistam a terra ao longe, qual crianças que se saciam com a resposta de um adulto. O pecado não lhes sabe a maçã. A nenhum mortal, o pecado lhe sabe a fruta.
Numa noite igual a esta, ele desenhou-lhe um triângulo na testa, proferiu as palavras mágicas, que afinal são meros meios para atingir a intenção, abraçou-a e puxou-a para ele, encostaram-se nelas e dormiram nas palavras; de repente, mais frases se juntaram ao contexto. Ele não gosta de frases, gosta de ver; ela não vê, pensa. Ele pôs a mão no ventre dela, exausto. Ela virou-se, fechou os olhos e fingiu não pensar.
Retomando a primeira noite, eles satisfizeram-se mutuamente, pela segunda vez. A matéria torna-se fácil de descobrir, quando o interesse passa a ser o desenho de três lados. Satisfizeram-se mutuamente, pela terceira. E, ainda que a sucessão dos dias continuasse a sua tarefa, tal como no relógio, a viagem é sempre a mesma, a deles também o é (mas não há memória dela). Ele voltou a desenhar-lhe um triângulo, e ela espantou-se da mesma forma que o fizera nas outras vezes anteriores, sem o saber. O amor dura mais do que aquilo que pensaram. Ao satisfazerem-se pela quarta vez, imaginaram a matéria da felicidade, e, considerando que esta tem curvas, seria algo parecido ao símbolo que os humanos convencionaram para denominar infinito. Este jogo ridículo e ondulante, do “entra e sai” das fases que os engolem como carnívoros esfomeados, esta forma de movimento que não os move, que os remete para um não-lugar, esta utopia desenfreada, não pensa em finais, caso contrário, o que as faria continuar?!
O final foi sempre diferente e, com eles, foi ao contrário.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Notas

Até ontem olhava para a meteorologia com desdenho, hoje compreendo-a, hoje faço pré-conceitos do tempo que vai fazer amanha, chego, inclusive, a aperceber-me das formas geométricas que, há uns tempos, alguém me havia dito que aconteceria, exactamente após a experiência estética que tive, num dia de chuva como este, - hoje não choveu, mas há algumas propriedades neste dia que me fazem identificá-lo desta forma. Amanhã sei que vai fazer bom tempo, pelo menos, tanto tempo quanto a minha mente quiser, durante o tempo que penso nas horas de há bocado. Acho que as verdades universais são percepcionadas pelo Homem, quando este não pensa, e, por pensar, neste preciso momento, sobre a verdade que as sustenta, digo “acho”, se dissesse com certeza, negaria a minha própria tese. É, de facto, essa mistificação do acto pleno de não pensamento, no qual o espaço e o tempo são postos no armário, as memórias se evaporam, o corpo treme, e tudo o resto que acontece, são processos naturais e físicos apenas -, quero com isto dizer que, o conjunto das transformações físicas que decorrem de um acto mutilado de pensamento, jamais poderão, a partir daquele momento, serem lembradas ou analisadas. É como se tudo o que se percepciona, de repente, deixasse de ser questionável, ou pensado, é apenas sentido. Digamos, portanto, que é um corpo que sente, e não um ser que também é corpo.
Diria que as verdades que procuramos não são impossíveis de encontrar, na medida em que há essa possibilidade, mas, quando a há, nós estamos incapacitados de a percepcionar, de a traduzir. Sabemos que a mesma energia que nos abraça neste momento, é exactamente equivalente à resposta que procuramos – daí o amor ser tão valorizado em nós, racionalmente dotados.
Hoje, apercebi-me da geometria das coisas, como verdade última de tudo o que existe -, imaginem um espaço amplo, um ponto no meio desse espaço, uma linha de comboio encostada (a desenhar formas estranhas no mundo), comboios que passam regularmente, informando-te (sendo a única maneira) de que o tempo passa, porque vês de fora, como um observador ideal, algumas luzes que se acendem e apagam, tentando transmitir algo, ainda que a sucessão temporal, de um comboio para o outro, seja a única prova de que o tempo passou. Olhaste timidamente para o relógio, um pouco assustada certamente, achavas que se tratavam de anos, quando no mundo real significaram apenas minutos. Junta mais um mundo ao plano. Vês o quadrado?! Vês quadrados, rectângulos, linhas paralelas, corpos paralelos cantando em uníssono, eu diria mais, vendo em uníssono.
Estou transpirada, vi tanto hoje e cansei-me, “às vezes a beleza é tanta que penso não conseguir aguentá-la”.

domingo, 10 de outubro de 2010

dez do dez do dez



Às vezes, antes de adormecer, imaginava que pousava os olhos na mesinha de cabeceira, ao lado dos livros que me impuseste, dos lenços de papel que substituíram os carinhosos lenços de pano, do candeeiro preto e branco que ilumina um quarto daquilo que normalmente está sempre escuro. Pousei-os dentro de um copo com água para não secarem, seria, certamente, para já, uma imagem bem chocante vê-los secos e apagados, agito-os, - bem, para esta imagem não preciso deles, para os ver nunca precisei, para ver o que está dentro deles, jamais…
Nunca disse a ninguém, mas o revólver continua lá, na gaveta da mesa ao lado da cama, e o limão, esse, já apodreceu, foi parar ao copo do álcool que bebeste, e não me contaste. E, se os meus olhos estão sobre o tampo que protege a arma, estão acima dela, vêm o sangue que me fizeste derramar por já não pertencer a nenhum braço humano carinhoso que me viu nascer.
Imaginar-me sem olhos, não é estar cega, é simplesmente saber que guardei a visão noutro sítio. À noite, todos a guardamos, ainda que seja por algumas horas, numa dimensão cinzenta, descansamos os sentidos que o pensamento ousa estimular. Quando não tinha olhos, tinha infância. Adorava a metáfora que o meu pai repetia inocentemente, aquela em que ele fazia de conta que retirava um olho – fazia um barulho com a boca, abraçava o olho com a mão, e fazia um gesto que parecia retirá-lo; depois fechava a pálpebra, e eu ria-me. Sabia tão bem que era impossível, não a parte física da questão, mas aquela em que a omnipresença vê, julga e não perdoa. Fazer de conta que se esquece, é não esquecer e não esquecer é cremar a possibilidade de perdoar.
Espero ser capaz de deixá-los sempre de lado. Às vezes, o tempo dava-me a esperança de que me guardava uma mesinha especial, com um sítio destinado aos meus olhos. Outras vezes, guardava-os numa mesa normal, como aquela que tenho agora.
Quero um ramo de flores, que viva ao lado da caixa dos meus óculos, quero que as suas raízes entrelacem a arma e dificultem o seu uso, e, que da próxima vez que tiver que a usar, encontre algo mais do que apenas uma bala, e sempre a mesma. Quero uma gaveta que guarde os cheiros das pessoas que gosto, quero que na vigília, aquilo que não posso trazer dentro de mim, fique comigo quando morrer. Prometo agradecer-te bem pelo pensamento que me deste. Quero uma pedra simples e bonita. Quero um poema que goste. Quero um sítio com flores. Não me quero ir embora, mas quando for, quero isto tudo.