
O vómito de céu já não era escuro, algumas manchas claras começavam a aparecer na imensidão, bem por cima de mim, penetravam lentamente, sem se mostrarem, porque os meus olhos não conseguiam definir o momento inicial, nem os outros que se iam acumulando como os maços de tabaco que um fumador compra, nem o último, que só o situei após alguns minutos do dia ter aparecido. A memória é assim, em alguns arquivos é sempre dia, a claridade é tão vasta, e eu não dei por ela a entrar, nem pelo tempo que passou, nem pelas seguintes que se sobrepuseram, não dei por nada. Gosto de ver o amanhecer, porque não o compreendo; ontem não me deixei dormir, permaneci de olhos bem abertos e ocupada, desejei ver o sol a nascer, calculei mais ou menos a hora, sentei-me cá fora, no cimento, de pernas cruzadas, respirei fundo e preparei-me para tomá-lo com toda a atenção que tenho, distraída, porque esperava, cheia, pois estava sozinha, com uma câmara fotográfica pronta a roubar uma imagem, duas, da natureza que acabava de dar à luz. Começaram a aparecer fendas no céu, até que os meus olhos conseguiram ver mais longe, até eles serem capazes de definir coisas à distância, como era normal. Eu adoro aquele céu. A mim devia-me este amanhecer, devia-me nadar nua no tanque, no rio, sentir o meu corpo em comunhão com a água, sentir-me, dar olhos a todas as minhas partes, sentir-me mulher, parte das árvores, da água, dos pássaros, das plantas, das nuvens, a mim devia-me tudo isto. A mim devo-me toda a vontade que tenho.