quarta-feira, 28 de outubro de 2009

1. Palácio


Os degraus estavam lá. Sempre estiveram, marmóreos e axadrezados; cheiravam a lixívia e eram altos. Matei um mosquito. Tentei subir, solenemente e de cabeça baixada como quem já mostra o lenço branco mesmo antes de a batalha começar, e, sem que ainda tivesse dado o primeiro passo, peguei no revólver. Talvez o suar do exercício físico de fazer aeróbica numa escada fosse equivalente ao de um suicídio. Quanto não se deve emagrecer com pensamentos tão densos como estes. A balança estava errada. Na realidade, sinto-me mais pesada do que nunca, mais pesada do que ontem, mais leve do que amanhã. Quase que matei uma formiga, desta vez. Que sensibilidade para a morte têm estes bichos, e nós que queda para os pensamentos e meditação…completámo-nos como o sexo. Eu sou quem pensa, tu quem faz. Nós somos eu e eu, eu não sou ninguém, porque sou muita coisa.

O comboio está a chegar. Consigo senti-lo. É agora que a minha memória grava a analogia que normalmente o meu cérebro se serve sempre que vê tal transporte público. Quantas analogias serão precisas dentro do tempo, para que o tempo as torne débeis e inúteis. Assusta-me, sinceramente, que venha ainda mais uma tentativa, ainda mais intensa, ainda mais real, corpórea. Espero que efémera; se vem mais uma, virão mais amanhãs. Eu espero. Faço figas. Quero viver, mas não desta maneira. E se houver só uma? E, se me assusto como quem acaba de ter um único momento de lucidez em toda a vida, jaz em mim a razão que não tenho, mas que construo de que penso fazer algo e fico apenas pelo pensar. Não o faço, não o vou fazer.


O grito abafou no pinhal. As árvores esconderam-no por baixo dos seus ramos extensos e esguios; quem me dera ser feita de árvores por dentro. Pulmões tenho, mas só servem para respirar. E quem respira, só serve para viver. Só servir para viver, é não viver. E, não viver é morrer.
Ouvi uma voz. Não consegui decifrar o som esquisito que entrava por mim, ondulante; também o cheiro daquela natureza verde e escura subia sorrateiramente pelas minhas narinas, que fedor, mas era livre, era livre…Livre. Meia escondida naquela escuridão imensa, por muito negro que estivesse o panorama de todas as memórias, anseios e planos, era mais clara que toda aquela obra divina e, com alguma luz que a minha mente emitia, descobri o estado mais puro e relaxante que algum ser humano ousa algum dia ficar. Fechava os olhos, voltava a face para a luz, tentava arduamente cegar as pálpebras com os raios do astro rei, enquanto as árvores faziam festas no meu corpo e na outra natureza que me rodeava. A luz que se fragmentava pelos variados braços da natureza batia-me nas pálpebras, nos olhos, no corpo à medida que o autocarro me levava para lado nenhum. Porque ir para casa é voltar para nenhum lado. Esse lugar não existe. Talvez a morte da lua ainda guarde algo mais que não seja molhado e doce. Pensar na noite é saber que vou ser livre. É abstrair-me do tempo em que sinto com o coração deixando-o sentir e ridicularizando todas as suas preces. Não me acorrento quando sonho, entro, sim, num ciclo vicioso de tal abastraccionismo que me leva ao extremo absurdo de pensar que sou feliz. Abstenho-me de qualquer sentimento horrorizado, abstenho-me de gritos e queixumes, liberto a minha alma mesmo que ainda seja de brincadeira e voo.