quarta-feira, 28 de outubro de 2009

12. Leitaria


Deu-se a explosão. Tudo explodiu, morreu, voou e reencarnou. O momento que fica entre a vida a morte e qualquer coisa mais foi tão suavemente silencioso como um grito nos sonhos. A ausência de som foi tão nítida como o branco numa tela. Mas estava escuro, pois os incêndios e a noite pintaram o quadro daquele dia. A destruição era tanta, mas mesmo assim, já mortas, as beatas continuavam alegremente rezando, a um ente superior ao qual se escravizam; só pode ser homem, isso é certo. E, à medida que iam sendo degoladas, as cabeças caíam no chão com as faces voltadas para o passado e as bocas, essas estavam dependentes da última palavra da oração que pronunciavam; havia bocas que ficavam completamente abertas, enfim, a palavra “Ámen” dava que fazer. E, mesmo naquele caos tremendo, ainda havia quem, mesmo sabendo que a morte era certa, decidisse que a última coisa que queria ver e fazer era visitar a Igreja, a casa do senhor, a casa dos dízimos! Admiro a completa inocência destes seres religiosos. Forçosamente acreditam no que nunca viram, e são felizes. Qual desgosto, qual desgraça, nada lhes pega, são imunes porque nunca admitem a culpa, fazê-lo era desacreditarem naquilo para que trabalharam toda a sua vida. As crianças, essas, tristes e pobrezinhas, coitadinhas, riam-se e brincavam aos bonecos, às casinhas e às caçadinhas. Hoje, as caçadinhas apenas evoluíram de nível, eu subi uns quantos, hoje jogo à procura incessante pela felicidade. O mais engraçado de tudo, é que ela é tão rápida, mas tão rápida que não faz parte das personagens do jogo, e, o máximo que posso caçar será o senhor tédio, a senhora razão, a senhora apatia e a senhora desilusão. Consigo ganhar pontos extras se apanhar o Senhor ridículo porque me permite ridicularizar todos os meus medos, anseios…pensamentos.
Brincavam as crianças felizes pelos passeios dos horrores, onde ficavam?! Em todo o lado, todos os passeios fazem-me náuseas. Qualquer decisão é um desassossego, e qualquer caminho, uma gravidez. Acabei por ir contra ao coveiro, estava consolado porque finalmente o seu trabalho tinha progredido economicamente para o capitalismo, suado, disse-me: A Terra é pesada, faz-me transpirar. Ela aguenta connosco num primeiro momento e, num segundo, somos nós com uns ínfimos quilos por cima das nossas tábuas de madeira. Ninguém dá nada a ninguém, menina! Fez-me pensar, meditar durante lânguidos momentos. Ele tinha razão, isso era óbvio. Facilmente, abstraí-me com o panorama de horror que os meus céus perdidos, mas vivos, acabavam de mostrar. O coveiro de tanto emprego, perdeu a conta de quem estava a enterrar, as cerimónias ficaram para depois. Muitas das vezes, famílias completas e amigos estavam todos mortos, o ritual era impossível. Festejar?! Festeja quem vive!
Que fazia eu naquele sítio? Naquela vida? Nada. Não obstante fora quem fazia tanto e quem atribuía todo o sentido em estar aqui que partiu…
Ouviu-se um tiro, mas eu, eu já não o ouvi.