quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Dentro do meu cérebro há um quarto, com pouca luz, muito pouca, no qual está uma réplica minha sentada no chão, acorrentada à parede, no chão estão migalhas cheias de bolor, já cresceram ervas daninhas à minha volta, alguns cantos cheiram a urina, que me anestesia para que adormeça sem pensar, de vez em quando aparece um homem, qual besta sisuda que me diz poder escolher entre migalhas com bolor ou coisa nenhuma, e são todas iguais, todas do mesmo tamanho, com a mesma doença e eu digo-lhe incessantemente que não consigo escolher, e ele diz-me para o fazer e bate-me para que acorde (ou adormeça de uma vez), eu escolho uma migalha qualquer, ou melhor, que penso eu ser qualquer, quando a besta sabia que era exactamente uma qualquer, porque nesta vida não há importâncias maiores, nem nesta, nem em nenhuma.
Mandei uma carta ao pintor, queria partir-lhe o quadro na cabeça, abrir-lhe a cabeça, chupar um pouco do seu sangue, e dizer-lhe que a sua obra me mete nojo, às vezes, porque é só às vezes que eu não gosto do mundo, nem das suas cores. Algumas pintas de sangue mancharam a tela, e eu criei uma nova cor no meu mundo, acidentalmente, e, acidentalmente, fui assassina durante cinco segundos. O céu do quadro ganhou uma tonalidade avermelhada, assim que espalhei com o dedo algum do seu sangue, que me importa se o criador morreu? A partir do momento em que algo é criado, tem de se deixar ir, como uma mãe que pariu um filho, e o mundo já está há muito tempo sem alguém, o pintor anda ocupado, mas eu não, sempre posso actualizá-lo dentro de mim, mas a besta não me larga, besta sadia que me acorrenta dentro do quarto, com pouca luz, junto a mim, desde que nasci. Quero estar dentro do meu útero, pinta-me isso, por favor, qual será o cheiro dele? Deve ser fascinante ficar durante anos no mundo adormecido, dentro de alguém, à espera de uma ordem para viver, deve ser fascinante ficar calado, cúmplice desta merda toda, deve ser fascinante ouvir a voz da mulher onde se encontra alojado sem nunca a ter visto, “que será ela? Uma besta? Às vezes parece uma, outras parece não ter sexo, às vezes ouço mais vozes do que a dela, mas outras estão mais perto, algumas mesmo perto de mim, a dizer “amo-te” ofegantemente, outras parecem dela, às vezes ela fala com ela própria, besta estranha, que coisa mais estúpida.” Um útero tem cérebro certamente, quanto muito partilhará do meu e saberá que sou uma ela e terá a mesma língua natural que eu. Tanto pampsiquismo para apagar esta solidão! Parabéns escrivaninha, parabéns papel, parabéns caneta, que vivas muitos anos, que tenhas muita saúde, que sejas feliz! …Por que não deste tu consciência a estas coisas? Gostariam elas de ouvir este discurso mundano? Pintor, achas que gosto de ouvir esta merda? Que escolha foi essa a tua, meu caro. Eu desculpo-te, eu desculpo-te! Para não bastar, ainda me desta esta coisa ridícula chamada perdão, que muito sinceramente, ainda foi pior criação que a da consciência, ai pintor, que deste a esta tela dimensões demasiadas.
Vai com o quadro lá para fora, está partido, agora sujo de sangue, vai lavá-lo na chuva fria que cai lá fora, ninguém vai sentir nada de diferente, enche a tigela de sopa à rapariga que morre de fome, dá moedas ao toxicodependente que apenas deseja que lhe desenhes mais uma dose, molha todas as caras, vai apagando o mundo, ninguém notará pela sua falta, afinal o mundo está sempre em constante mudança, apaga o desenho, desenha por cima, toda a gente diz que mudei e a culpa foi tua, estás sempre a desenhar-me formas em cima, vai pintor, de quadro encaixado no sovaco, como eu encaixo todos os livros de filosofia, vai pintor, que me deves uma, não percas tempo!
Desce a rua, aninhado com a tua obra, não olhes para o lado, podes ver algo perfeito e não convém, muda a tua obra, desaparece e reaparece sob a forma que desejarias, e, se desejares ser forma, jamais estarás sobre ela, serás servo dela, acorrentado às paixões, como cada homem que vai segurado ao barão do autocarro, uma tentativa árdua, por vezes nem tanto, de se manter equilibrado, enquanto não se ocupa de coisa nenhuma, calca cada paralelo do soalho, eu gosto de calcar alguns, penso no sabor que terão de tantos pés terem passado, serão estes só para calcar? Terão as ruas algo para nos dizer? É que quando vou sozinha a caminhar, certas ruas mudam o meu pensamento, este caminho idiossincrático das ideias deve ser despontado por algo e, muito sinceramente, creio que seja a minha acção física. Por isso, querido criador, vai dar um passeio, refrescar as ideias e espera que a tua inspiração venha, que a minha não está para breve.