Às vezes, antes de adormecer, imaginava que pousava os olhos na mesinha de cabeceira, ao lado dos livros que me impuseste, dos lenços de papel que substituíram os carinhosos lenços de pano, do candeeiro preto e branco que ilumina um quarto daquilo que normalmente está sempre escuro. Pousei-os dentro de um copo com água para não secarem, seria, certamente, para já, uma imagem bem chocante vê-los secos e apagados, agito-os, - bem, para esta imagem não preciso deles, para os ver nunca precisei, para ver o que está dentro deles, jamais…
Nunca disse a ninguém, mas o revólver continua lá, na gaveta da mesa ao lado da cama, e o limão, esse, já apodreceu, foi parar ao copo do álcool que bebeste, e não me contaste. E, se os meus olhos estão sobre o tampo que protege a arma, estão acima dela, vêm o sangue que me fizeste derramar por já não pertencer a nenhum braço humano carinhoso que me viu nascer.
Imaginar-me sem olhos, não é estar cega, é simplesmente saber que guardei a visão noutro sítio. À noite, todos a guardamos, ainda que seja por algumas horas, numa dimensão cinzenta, descansamos os sentidos que o pensamento ousa estimular. Quando não tinha olhos, tinha infância. Adorava a metáfora que o meu pai repetia inocentemente, aquela em que ele fazia de conta que retirava um olho – fazia um barulho com a boca, abraçava o olho com a mão, e fazia um gesto que parecia retirá-lo; depois fechava a pálpebra, e eu ria-me. Sabia tão bem que era impossível, não a parte física da questão, mas aquela em que a omnipresença vê, julga e não perdoa. Fazer de conta que se esquece, é não esquecer e não esquecer é cremar a possibilidade de perdoar.
Espero ser capaz de deixá-los sempre de lado. Às vezes, o tempo dava-me a esperança de que me guardava uma mesinha especial, com um sítio destinado aos meus olhos. Outras vezes, guardava-os numa mesa normal, como aquela que tenho agora.
Quero um ramo de flores, que viva ao lado da caixa dos meus óculos, quero que as suas raízes entrelacem a arma e dificultem o seu uso, e, que da próxima vez que tiver que a usar, encontre algo mais do que apenas uma bala, e sempre a mesma. Quero uma gaveta que guarde os cheiros das pessoas que gosto, quero que na vigília, aquilo que não posso trazer dentro de mim, fique comigo quando morrer. Prometo agradecer-te bem pelo pensamento que me deste. Quero uma pedra simples e bonita. Quero um poema que goste. Quero um sítio com flores. Não me quero ir embora, mas quando for, quero isto tudo.