segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

21 de Julho de 1996



A noite caiu tão facilmente naquele dia, mais do que em qualquer outro; o desespero de rompe-lo era animalesco, completamente instintivo e, tal era o manto preto que cobria o maravilhoso céu que a luz humana era ineficaz para se ver o que se tinha de ver. Os olhos tentavam, como pinças alienadas, buscar pedaços de luz no meio da escuridão insensível; estes precisavam de ver, como o ser humano de respirar.
Ela escrevia, delicadamente, uma carta; daquelas que só se escrevem uma vez na vida. À luz das velas, com o calor a bater-lhe na cara e os sentidos a comunicarem-lhe sentimentos impelidos de se manifestarem na loucura que arrebatava a sua mente insana, respirava forçadamente, como quem respira pela última vez e, com o coração inchado, perto de sofrer um ataque neurasténico gravíssimo, ia-se lembrando das frases que cuidadosamente memorizou dos seus autores prestigiados e queridos. A vela ia a meio, poder-se-ia dizer, também, que a meio estava de perder o seu objectivo primórdio da sua existência, mas ela, ela não estava a meio, nem de longe, nem de perto; ela estava no fim. Não via objectivos próximos e, também, não queria lembrar-se de nenhum. Procurava alguns, a curto prazo, tal como este: a carta.
Olhou instintivamente para a janela e, não vendo nada, viu a sua vida reflectida no vidro sujo. Realmente, não mais do que a escuridão era a vida de qualquer pessoa, pois se alguém não se quer lembrar das coisas boas por conveniência, as memórias más não trazem a luminosidade gasta de uma boa. Ela não sabia que a sua vida era a de todos. De facto, nunca tinha aprendido a gostar. E, como a noite persistia em ficar, vislumbrava-se furiosamente no vidro da janela, especada. Esperava ter uma revelação, mas isso não seria mais que o desenrolar da carta que afinal escrevia. Que revelação poderia ela ter, senão aquela que não quer? Se éramos só uma a pensar, haveria, justamente, para cada uma, um pensamento. Se ela tivesse sido outra, eu seria mais feliz.
Eram duas velas, com os mesmos objectivos, colocadas antepostas sobre o mesmo ângulo, servindo o mesmo propósito, no mesmo local, à mesma hora. Acendidas ao mesmo tempo, iam-se queimando à medida que as palavras nasciam no papel. Pois a duração de ambas não fora igual. E, igualmente, não foram os seus pensamentos. O fogo ia decidindo como queria queimar e, alguém em mim decide agora o que ela, possivelmente, escreveu.
Tal era o papel branco, pousado sobre a secretária branca no quarto escuro, iluminados, realçados naquele quadro pitoresco, de uma verdadeira natureza inteligível. Dizia assim: “Sinto-me lamentavelmente só; não é um sentir vulgar, mas uma solidão irreversível. Sou como um quadro, estática e profunda. A minha beleza é tão relativa como pessoal, cada um sabe o que vê, e não é sempre a mesma coisa, pois os pensamentos diversos dos olhos que viram algo são sempre distintos. Há quem só veja o que quer, e, mesmo não existindo tal coisa, imagina-a. Viaja literalmente pelo prazer da imaginação e ama o que não é real e objectivo. O verdadeiro amor é esse. O ser híbrido, criador deste mundo, também fez dois amores. Um que é contornado com a imaginação, que é mais sonhado do que realmente presenciado. Este é fugaz, não obstante, é aquele que pode levar o ser humano ao ponto mais alto do cume “prazeiresco”, e não fosse tudo o que é maravilhoso ser de curta duração. Aqui reside, principalmente, a essência de tudo o que é incontrolável; procurámos neste amor, razões, erradamente. E, desta maneira, tentámos reinventarmo-nos, como seres novos que amam cada dia mais, naqueles dias que amamos menos. Neste pequeno amor, amamos exageradamente mais o papel da relação que possuímos, por isso, baseados nos desejos inerentes à nossa pessoa, criamos o amor que merecíamos e, dos confins do inconsciente, deixamos libertados pedaços de sonhos tão forçadamente pretendidos. Mas, é no outro amor que conseguimos os ingredientes indispensáveis à construção dos sonhos. Um dia disseste-me uma coisa e, no outro dia partiste. Um dia escrevo uma coisa, e no outro partirei. (…)”