terça-feira, 29 de dezembro de 2009

23 De Junho de 1956




(Continuação de uma carta à existência)


Sentei-me na poltrona voltada para a janela, na poltrona não, era uma simples cadeira de plástico cor garrida, verde (penso eu) bem agarrada ao chão pelas mãos da senhora gravidade, responsável por dar muito peso aos meus pensamentos, que tão altivamente nascem dentro de mim. Sempre que quero voar, a existência não deixa. Mas, por sua vez, quando durmo, que é algo muito parecido à morte de qualquer ser vivo, ela adormece também e, a senhora de que te falei, simplesmente desaparece. Com isso, outra “gravidade” se apodera do nosso voo e, como livres pássaros brancos, sobrevoamos os terrenos tão bem controlados pelo inconsciente. Se Deus for alguma coisa, ele será o inconsciente. Tal como aquele objecto que serve prioritariamente para alguém se sentar, estava para a janela, eu sentei-me e, obrigatoriamente, voltei-me para a luz. Parecia que ela estava à minha espera, naquele preciso momento, parecia que tinha preparado cuidadosamente cada passo, que se sentia feliz ao passo que o meu corpo realizava metodicamente sem se questionar; e fui eu pensar que era vontade…
Girei a cabeça de acordo com o ângulo que a beleza fazia girar. Às vezes, o mais belo está mais perto do que imaginámos; dizer que o ser criador de tudo isto é híbrido, não deve ser apenas uma fala. É verdade que não me recordo das fracções de segundos que os meus olhos demoraram a captar tal imagem, pois esses, não foram mais do que o tempo utilizado para realizar uma dentre muitas outras das faculdades que o Homem possui e, por isso, embalada pela rotina, deixei-me ir, sem reparar em pormenores. Não obstante, posso garantir-te, com todas as certezas que a minha existência deixa provar, que os minutos a seguir ficaram-me minuciosamente gravados e, ocupam, hoje, o mesmo espaço que as memórias de toda uma vida que foi minha.
Hoje senti-me una e completa. Sabes, querida existência, hoje é talvez o dia que te vais recordar melhor, um dia. Hoje não te censuro, não te critico e também não te rogo pragas, vamos dançar, agora. Hoje é quase ontem, mas sinto-o tão perto. Não por ter sido um ordinário dia, mas pelo rompimento da estranha aparição num dia tão ordinário como este.
Lembro-me de ver, pelo canto do olho direito, uma garrafa de vodka; estava quase vazia, mas o corpo envidraçado permanecia robusto. Foi então, que me surgiu o breve dos mais breves pensamentos: Do facto de estar quase vazia, não implicava que não pudesse ser cheia de novo. Seria pouco provável, porque sempre era mais fácil comprar uma nova do que encher a velha. Mas, por que outra razão o corpo permaneceria forte, naquele quarto?! Depois deste momento reflexivo, os meus olhos viram o que poucos neste mundo ousaram focar.
As nuvens escorregavam no céu azul, deslizavam como os pés que vão fazer desporto nas neves da Suécia, brevemente, ao passo que o manto azul se misturava com o negrume de algumas formas estranhas brancas e cinzentas, a chuva lacrimejava sem parar, de forma objectiva, de forma que os meus olhos a pudessem ver e não fosse apenas a metáfora dos cem poetas que gostariam de ter presenciado o que vi, hoje. Estava eu, portanto, sentada; ao meu lado jazia uma virgem sem cor com um filho ao colo, do mesmo lado, um pouco mais acima, a garrafa de rótulo pouco colorido, de frente, uma janela que só abria um quarto (mais tarde explicar-te-ei porquê) e, dentro da janela havia o mundo. Mais perto, estava uma linha de comboio com menor movimento que as normais, por trás e ao lado, jaziam umas árvores nuas, completamente. Atrás de todo este cenário, estavam casas, muitas casas, tantas que nenhuma se sobressaía. Pronto, acabei de descrever-te de forma inútil a paisagem que vislumbrei. E de forma inútil o homem descreve cada prazer. Porque cada prazer é uma coisa à parte.
Fiquei uma, duas, três, quatro eternidades, no máximo, parada, com a imagem focada no olhar, mas renovada a cada segundo e não, como acontece sempre, memorizada e percepcionada posteriormente. Pela primeira vez na vida, senti-me, da maneira mais livre, presa a uma paisagem.
Toda a minha vida estava congestionada ali, tanto temporalmente, pela intensidade do momento, como metaforicamente. Os presságios de que outrora te tinha falado na generalidade apareciam, agora, naquele lugar, relacionados comigo, e só comigo.
Conseguia sentir o cheiro do ferro da linha de comboio, não porque fosse possível cheirá-lo, mas porque de tão constantemente ter sido visionada na minha cabeça, o seu odor tornar-se tão familiar, por ser, intelectualmente criado. [Com esta vontade, poderia ter criado o mundo, sem o saber.] A janela que timidamente ousava abrir um quarto do seu quarto para que fora predestinada, sorria sorrateiramente ao meu olhar; pois, era impossível tocar-se com a morte, a beleza que o rectângulo mostrava, para isso, bastava a linha e o comboio. A virgem, abaixo de mim, mostrava-me o passado que ficou ligeiramente abaixo e a minha superioridade perante a inutilidade daquelas figuras cristãs. A vodka, uma das únicas bebidas alcoólicas que me agrada, estava ali, pousada, mostrando a porta do sonho, aquela que abro sempre que preciso de sair de ti. Agora, aparte todas as outras coisas que não consigo descobrir, pigmeus que completavam todo o meu quadro, jazia o céu. Tão azul. Embora, o tempo estivesse encoberto, a felicidade dentro de mim era tal que os meus olhos aumentaram a luminosidade de toda aquela experiencia estética. E, a certa altura, a chuva que caía lá fora, sem me magoar, reflectiu-se nos meus olhos, sem ter sido uma vontade aparentemente minha, começaram a arder. Depois, incharam de forma ridícula conjuntamente com o meu peito; senti o mar a fazer-se.
Perante toda aquela harmonia, perdi as forças de que tu me dotas. Mais uma prova, para constatar a embriaguez do demiurgo, é que também eu, encontrando-me depressiva, perco-as, igualmente.
Lembro-me, vagamente, de ouvir uma música por trás. Mas o som soava-me tão desfigurado que o melhor era o do meu corpo em funcionamento. Aquela imagem tinha mais objectivos do que aqueles que sou capaz de identificar, agora. Por isso, te digo que recordar-te-ás muito bem, mais tarde, do dia que já foi ontem.
(De forma extensa e inútil, termino o que não está acabado. Compreende, existência, que isto era demasiado para a Linguagem.)